Na revista "Up Magazine TAP" foi publicado um artigo de Luís Gouveia Monteiro intitulado "Lisboa-Cascais-Mafra – Viagem ao fim do império" com o escritor Helder Macedo, com passagens por lugares que fazem parte da obra de José Saramago.
Fotografias de Marisa Cardoso
O artigo pode ser recuperado e consultado, aqui
"Lisboa-Cascais-Mafra – Viagem ao fim do império"
"Vamos com o escritor Helder Macedo pelo verso e prosa da cidade do Tejo até ao território de uma das maiores obras de Saramago, o Nobel da literatura português. Um roteiro seguindo a terra que acaba e o mar que começa – ou o contrário –, por ruas poéticas, falésias atlânticas e um palácio barroco."
Largo de Camões - Lisboa (Fotografia de Marisa Cardoso)
Em cada esquina, um poeta. Talvez diga alguma coisa sobre Lisboa, talvez não, mas o coração da capital está apinhado de artistas da língua. Luís de Camões (1524-1580), imponente, no cimo da estátua da praça com o seu nome. António Ribeiro Chiado (1520-1591), mesmo em frente, e Fernando Pessoa (1888-1935), abraçado aos turistas, na esplanada do café A Brasileira, do outro lado da rua. A uns passos, no Largo do Barão de Quintela, ainda passaremos por Eça de Queirós (1845-1900), também em bronze, na versão do escultor Teixeira Lopes, com a verdade toda nua nos braços. O fim de semana começa no coração da cidade, na sede da Abysmo, editora que publicou, em 2014, Camões – A Viagem Iniciática, de Helder Macedo.
Espera-nos João Paulo Cotrim, o editor. O ponto de encontro é a Mimosa do Camões, restaurante na Rua da Horta Seca, em frente ao Ministério da Economia. Funciona como cantina e tertúlia da editora. Helder – que viveu a juventude em ditadura nas mesas míticas do Café Gelo, no Rossio – declarou aqui há um ano: “Reencontrei a minha gente”. O nosso convidado chegou de Londres no dia antes. Está hospedado no Hotel Britania, cuja recuperação elogia. Gostou especialmente dos frescos com representação das ex-colónias ultramarinas, “Açores e Madeiras incluídos”. Chega com o pequeno-almoço tomado. Pouco passa das dez da manhã quando avançamos da Mimosa para o Camões. O programa é simples, o trajeto também: ir sempre em frente e depois virar cinco vezes à direita, até fechar círculo, passando por Cascais e Mafra. Até regressar ao mesmo sítio. Em cada esquina, virar um poeta.
O primeiro poeta é Camões, lá em cima, na estátua. O poeta que o professor Macedo tem ensinado ao mundo como o primeiro moderno: homem que correu mundo e correu perigo e que mandava dizer por carta, aos amigos, que preferia as mulheres do Chiado porque as de Goa não sabiam citar Petrarca. Mas desengane-se quem ler nessa queixa um machista literato. Muito pelo contrário, o autor de Os Lusíadas foi um pioneiro cultor do desejo feminino: “Camões faz a crítica da conceção do amor em que a mulher é apenas recipiente, em que é o depositário das fantasias masculinas. É o oposto da neutralização do objeto amoroso. O Camões, muito claramente, lidou com mulheres com personalidade… com existência própria. Isso certamente que é parte do seu gozo. As figuras femininas no Camões são extremamente potentes”.
Rua do Alecrim - Lisboa (Fotografia de Marisa Cardoso)
Ainda não virámos a primeira esquina e já se começa a insinuar outro poeta, com uma multidão de heterónimos. Começa a ver-se o rio Tejo e Cacilhas, na outra margem, no enfiamento da Rua do Alecrim, e a modernidade vital e sensual de Camões aparece como quase antípoda da modernidade assexuada de Pessoa (o Virgem Negra, como lhe chamou o surrealista Cesariny) – que preferia a viagem interior? “Há um elemento no Pessoa de desistência, de resignação e de aceitação. Há uma perversidade profunda. O negativo total é o início de uma ressurreição. A não identidade, o desfazer da identidade é o início do processo da existência. É um misticismo antiquado, nesse aspeto. As conceções místicas do Pessoa são muito mais antigas do que no Camões. O Pessoa desfaz a vida, é terrível. É a total desistência tornada grandeza. O Camões é o homem que derruba todas as fronteiras com deslocamentos muito subtis. O amor e a linguagem surgem como veículos para a felicidade humana. Isto foi uma revolução.” A cada um a sua viagem, a cada qual o império que lhe convém.
À procura do mar
Primeira à direita e, à medida que se avança para a Rua do Alecrim, o espelho de água do Tejo parece fazer recuar o horizonte. Andaram por aqui os surrealistas a dizer “sei vícios” aos ouvidos de coristas e marinheiros. Lá em baixo, à esquerda de quem desce, mesmo a chegar ao Cais do Sodré, o hotel de O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), “o melhor romance de [José] Saramago” (1922-2010, inspirado num dos heterónimos de Pessoa). E depois água, tanta água. É o sítio onde a terra acaba e o mar começa. Ou será o contrário?
Descemos a pé e pegamos no carro. Segunda à direita, está na hora de mudar de poeta e Helder quer falar de “Cascais”, o poema de Almeida Garrett (1799-1854) – “Minha alma em sua razão,/ Meu sangue em seu coração!”. Se o tempo estivesse melhor talvez tirássemos um retrato numa daquelas falésias, junto a um daqueles pinheiros mirrados. “A grande poesia de amor é sobre o enamoramento, sobre as pessoas se apaixonarem, encontrarem-se e amarem-se. Celebra-se o encontro. É muito raro haver um poema sobre essa terrível verdade que é o desacontecer do amor… E com o Garrett, no ‘Cascais’, o tema é esse, o amor desacontecido. Aquilo que foi o grande encontro erótico, sentimental, emocional, é contado retrospetivamente e resulta em dois grandes amantes que agora se cruzam na rua e não se reconhecem.”
Chuvisca na Estrada Marginal. Na Curva do Mónaco vê-se que o mar traz força. A barra do Tejo foi a primeira coisa que o filho do senhor governador de Moçambique viu quando chegou pela primeira vez à metrópole. “1948… tinha 12 para 13 anos, no paquete Colonial… que era um navio de decoração art nouveau que tinha sido confiscado à Alemanha no fim da guerra 14-18. Viemos por aí acima, foi uma viagem de 33 dias… de Lourenço Marques até Lisboa. Como era a última viagem que estava a fazer, passou por todos os portos: Cabo, Lobito, Luanda, São Tomé, Funchal e a chegada a Lisboa, deslumbrante, extraordinária. Um rio que abria, em vez de fechar, o rio abre.
Cascais (Fotografia de Marisa Cardoso)
– Era o sítio onde a terra acabava, como no primeiro verso de ‘Cascais’ de Garrett, ou onde a terra principiava, como na primeira frase de O Ano da Morte de Ricardo Reis?
– Eu sentia que o mar continuava, sabe? Porque há um afunilamento e depois o rio abre outra vez, não é? É uma espécie de continuação. A minha noção de rios eram os rios africanos: grandes, caudalosos… isto era outra coisa. E depois era setembro, ainda verão. Senti o mistério que Lisboa tinha.
– É a primeira chegada a Lisboa?
– Sim, sim. 12 para 13 anos. Tinha vivido em Moçambique, passado a infância no mato e os últimos dois, três anos em Lourenço Marques. O meu pai estava colocado em Lourenço Marques, numa situação de privilégio.
– Como é que vai acontecendo esse movimento do menino colonial para o autor pós-colonial?
– Começa com um choque extraordinário quando fui com os meus pais e os meus irmãos às terras ancestrais da minha família paterna, em Trás-os-Montes, Torre de Moncorvo. Eu, de repente, vi pobreza. Fez-me uma grande confusão. É claro que em África eu já tinha visto pobreza pior do que aquela. De repente, percebi que tinha vivido no engano. Que, afinal, o jardim do paraíso não era ali.
Primeira paragem: Hotel Albatroz. Refiro as amêndoas torradas e uso como desculpa o verso de Baudelaire em que se compara o poeta a um albatroz, elegante no céu, mas trôpego em terra, com as “asas demasiado longas para caminhar”, mas Helder traz-nos de volta para o chão da História: “O [hotel] Albatroz esteve em autogestão a seguir ao 25 de Abril [de 1974, revolução democrática]. Fui lá uma vez com a Maria de Lourdes Pintasilgo [única mulher primeira-ministra de Portugal, entre 1979-1980], que apoiava muitíssimo a autogestão e essa coisa toda. Hoje esquece-se muito o que ela fez. Este apagamento do que a senhora fez naquele tempo é que me indigna muito… E as pessoas sabem e continuam a ocultar”.
Não há amêndoas torradas, o chefe de sala confirma que deixaram de as fazer. Está chuva e vento na varanda, ficamos dentro. A evocação do Portugal pós-ditadura, na passagem dos anos 70 para os 80, evoca mais um episódio da singular biografia do nosso convidado: a transformação do jovem oposicionista que passou pela prisão e pelo exílio… em governante dos frenéticos tempos da revolução em curso. Primeiro como diretor-geral dos Espetáculos, em 1975, e depois como secretário de Estado da Cultura, em 79. “Foi uma época de total loucura, em que os acontecimentos eram diários.”
Passeando pela corte
De volta ao carro, continua a chover. Um cigarro antes, à porta do hotel. Outra vez à direita, em direção a Mafra, a 40 quilómetros de Lisboa, e ao que ficou do império colonial português. Chegamos. Nem de propósito, o carro fica estacionado em frente a uma árvore que o novo Presidente da República português, acabado de empossar, plantou na semana anterior.
– Revê-se na ideia de que Mafra, palácio último da monarquia antes da fuga da corte para o Brasil (em 1807, escapando ao exército de Napoleão) – ainda que imponente – é o pouco que ficou do império? Outras metrópoles produziram séculos de ouro e prosperidade, Lisboa deixou apenas um edifício disfuncional num sítio pouco provável.
– Sim, eu acho que a particularidade da nossa história é termos tido o único império cujas riquezas foram um fator de empobrecimento do país.
– Foi dinheiro que serviu para não trabalhar…
– Foi dinheiro que serviu para as oligarquias não investirem no país, e portanto não criarem emprego, não criarem trabalho. Fomos intermediários, vivemos sempre à custa de remessas.
– Serviu para as elites guardarem o poder…
– Exatamente. Tivemos elites profundamente cultas, mas nem sequer em monumentos deixámos muita coisa. No fundo queríamos todos ir para Paris, percebes? Nós nunca investimos. A Holanda investiu em massa e criou uma classe média. A Inglaterra, também. Nós, deste tamanho, com o ouro do Brasil e os diamantes de Angola, quando começa a guerra colonial, em 1961, éramos o país mais pobre da Europa Ocidental.
Estamos junto ao convento e palácio, glorioso despojo, enorme máquina de não fazer nada.
– Que relação é que tem com o Memorial do Convento (1982)? É o livro que “faz” Saramago, não é?
– É o livro que faz o Saramago… É um livro de grande aspiração, de invenção, possivelmente, e onde o Saramago faz a transição do neorrealismo tardio, do Levantado do Chão [1980], que é, para mim, o fim do neorrealismo, no sentido positivo, da sua coroação. E aqui [Memorial do Convento] dá-se o grande salto para a imaginação. É uma celebração da capacidade humana de tentar o impossível e transformar o impossível em realidade. É onde, de algum modo, a ideologia marxista, construtora, levantada do chão, encontra uma dimensão universal. Como tal, é um livro extremamente importante. Tem um elemento de ironia, por ser, no fundo, baseado num dos edifícios mais importantes, mas ao mesmo tempo mais estéreis da nossa cultura. É uma celebração do poder real, como aliás o Saramago mostra, mas, ao mesmo tempo e, mais uma vez, uma grande construção da utopia feminina. O Saramago é um escritor utópico, não em termos de utopia marxista, mas utopia humana. E acho que é neste livro que isso se torna claro, falando de um símbolo do império português que dá para um momento, mas não dá para se levantar do chão o país. E o que é interessante é o Saramago ter posto a ênfase em quem constrói [o palácio], quem pensa e quem inventa isto tudo, quem inventa máquinas de voar [Bartolomeu de Gusmão, pioneiro português da aviação].
Palácio Nacional de Mafra (Fotografia de Marisa Cardoso)
Avançamos os 232 metros que ligam os aposentos do rei, na ala norte, aos aposentos da rainha, na ala sul. É o maior corredor palaciano da Europa, palco do “passeio da corte” em voga no século XVIII. 232 metros são também a medida possível do real abismo conjugal dos donos da obra. A visita é conduzida pelo diretor do Palácio Nacional de Mafra, Mário Pereira, e pela diretora do Serviço Educativo, Fernanda Santos, mas quem parece mesmo em casa é Helder Macedo. Especialista em crepúsculos ultramarinos, reconhece à primeira o sangue azul que aparece retratado nas paredes. Como se de família próxima se tratasse. Com 80 anos, impecavelmente vestido – pode tirar-se o colonialismo de dentro de uma pessoa, mas é quase impossível sacar-lhe do pescoço o impecável lenço de seda –, percorre sem um protesto a enfermaria, as cozinhas, a sala do trono, a sala da música, a sala da bênção, a biblioteca, e ainda tem fôlego para subir ao mecanismo dos carrilhões e depois à cúpula. Ou não fossem os poetas irresistivelmente atraídos pela luz zenital.
“No fundo, todas as viagens acabam por ser uma tentativa de chegar a nós próprios, não é? A deslocação pode ser feita no espaço e no tempo. Geralmente é a combinação das duas coisas, mas se o Ulisses não chegasse a casa, a viagem teria sido uma sensaboria. A ideia da viagem iniciática é a da transformação qualitativa que há no processo de viver. Ora, vive-se no espaço, daí a noção que se tem sempre da vida como uma viagem. Só que um percurso precisa de um propósito. Uma das coisas trágicas da nossa consciência humana é que nós somos capazes de conceber a eternidade não sendo eternos. Temos, portanto, de impor algum propósito a este acidente que é a vida. Esse propósito pode ser o encontro dos outros, dos amigos, dos amores, dos países. Pode ser a viagem. Viajar é, de facto, fundamental para nos definirmos a nós próprios. Só nos definimos em relação ao outro. Sem os outros não existimos.” Ao regresso, não nos demoramos no quarto onde a monarquia portuguesa, na pessoa de D. Manuel II, dormiu pela última vez, de 4 para 5 de Outubro de 1910, na véspera imediata da implantação da República.
Outra vez à direita, depois de Mafra, agora de costas para o mar. O regresso a Lisboa, mais rápido, faz-se pela autoestrada. À passagem pelo Parque Florestal de Monsanto, à entrada da capital, põe-se de pé outro poeta: Herberto Helder (1930-2015). “Se eu aderisse a qualquer coisa sentia-me preso. Isso deve ser uma coisa, de facto, psicológica… o não querer ser amarrado. Eu não uso telemóvel porque quero poder não ser encontrado. É uma coisa um bocado… clandestina.”
– Por falar em clandestino, a fase política do Café Gelo foi a sério, não era só conversa, envolveu pegar em armas.
– Sim, eu e o Herberto… o Herberto Helder.
– Sim… Chegou a haver sarrafusca?
– Não, porque à última hora, já tínhamos a coisa toda preparada, quando veio a contra-ordem.
– É aquele célebre episódio, consigo e o Herberto num carro cheio de armas?
– Sim, em 58. Depois isso veio a dar no golpe Botelho Moniz, mais tarde [tentativa de golpe de estado em Abril de 1961].
– E qual era vossa missão?
– Íamos a Monsanto buscar armas. Eu, o Herberto…
A odisseia termina
O último dia começa às dez da manhã, no Campo das Cebolas, em frente à Casa dos Bicos. Foi construída em 1523, a mando de D. Brás de Albuquerque, filho “natural legitimado” do segundo governador da Índia. Hoje é a sede da Fundação José Saramago. “Estamos a cuidar daquilo que é público”, explica Pilar del Río à chegada, anfitriã, companheira do Nobel desde 1988 até à morte. Muito lá de casa, como sempre, Helder folheia a última edição da fundação: um ensaio sobre o erotismo em Saramago, cujo prefácio escreveu. Derrete-se com a anotação no diário do escritor, onde aparece registado o dia em que conheceu Pilar “de Los Rios”. Um pouco à frente, detém-se na primeira página do original de O Ano da Morte de Ricardo Reis. Levanta-se outra vez a frase “onde o mar acaba e a terra começa”.
Pilar del Río, Presidenta da Fundação José Saramago, acompanha o escritor Helder Macedo
Casa dos Bicos - Lisboa (Fotografia de Marisa Cardoso)
Última vez à direita, outra vez de frente para o mar. A viagem vai acabar onde começou, no coração da cidade. O vespeiro das letras onde a cultura lusitana deposita, há cinco séculos, o vasilhame. Pilar del Río não conduz e gosta de andar. O destino é um dos restaurantes preferidos de José Saramago, o Farta Brutos, na Travessa da Espera, ao Bairro Alto. É apanhar a Rua dos Bacalhoeiros, atravessar a Baixa e a Rua do Crucifixo e depois subir outra vez para o Chiado. Helder, sempre pronto, dispõe-se fácil a encarar nova colina. A viagem pelo fim do império acaba muito apropriadamente à mesa, porque “se Ulisses não chegasse a casa a viagem teria sido uma sensaboria”. Abençoado império que produziu esta doçaria, estes príncipes."
texto Luís Gouveia Monteiro fotos Marisa Cardoso
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