Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Crónica "O Dia Internacional da Mulher" (8/3/72) - "As opiniões que o DL teve"

Crónica publicada no "Diário de Lisboa", sobre a precária condição feminina e a crítica mordaz contra os direitos por cumprir e reconhecer. 44 anos depois muitos deles, os direitos, estão por cumprir.
Rui Santos  

Pintura de José Santa-Bárbara, retratando a mulher do médico e o cão das lágrimas, 
personagens da obra "Ensaio sobre a Cegueira"


"O Dia Internacional da Mulher"
(8 de março de 1972)

"Comemora-se hoje o Dia Internacional da Mulher. Os modos de assinalar a data hão de variar certamente de país para país, e não cremos que o nosso se inclua no número dos mais pródigos em manifestações: a verdade é que somos bastante avessos a exprimir publicamente o que pensamos, quando de facto pensamos alguma coisa. 
No caso presente, temos até fortes dúvidas sobre uma geral compreensão do que signifique a existência de um Dia Internacional da Mulher, quando se sabe que a ninguém passou pela cabeça instituir o Dia Internacional do Homem... Um espírito irónico insinuaria que, sendo o mundo dos homens, mal parecia que eles se festejassem a si mesmos, quer em termos de confraternização quer em termos de reivindicação. Há um Dia Internacional da Mulher como há um Dia Internacional da Criança, e esta aproximação já nos dirá melhor que é no plano da sujeição que estes dois seres (a criança e a mulher) se encontram. O Dia Internacional da Mulher serve, enfim, para relembrar o que foi a difícil caminhada dessa parte da humanidade a que os homens vão buscar, com mais ou menos hipocrisia, as redenções de que dizem carecer: a mãe, a irmã, a noiva, a esposa... 
Mas o Dia Internacional da Mulher há de servir também para mostrar quão longe ainda está a mulher de pacificamente aceitar como possível o mundo em que vive. Em todos os planos de promoção (social, intelectual, jurídico, económico e político), a mulher segue o homem. Com mais rigor diríamos que a mulher é mantida atrás do homem: muitas das suas conquistas são apenas aparência, e, quando se tornam reais, correm o risco de, com maior ou menor rapidez, perderem conteúdo e poder de aplicação prática. Na maior parte dos casos, o tempo e os interesses dos homens encarregam-se de neutralizar as conquistas alcançadas: a emancipação (no plano económico, através do trabalho remunerado, no plano intelectual, graças ao desenvolvimento da instrução, e no plano político, pela obtenção dos direitos de voto e de elegibilidade) encontra-se ainda hoje limitada por mil e uma pequenas teias. À volta da mulher continua a tecer-se o emaranhado casulo que a manteve isolada do mundo. Há exceções, bem sabemos, mas essas, ao que dizem, só existem para confirmar a regra... 
Vai longe o ano de 1971 em que o Olympe de Gouges escrevia a sua «Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã»; já vai igualmente longe a época de Mrs. Pankhurst, aquela inglesa que criou, no princípio do século, a União Feminina Social e Política, e que mereceu, com as suas companheiras de missão e de luta, o apodo displicente, senão desprezativo, de «sufragista». Mas é apenas de ontem, de 1952, para sermos mais exatos, a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher, aprovada, por maioria, pela Assembleia Geral das Nações Unidas... Veja-se o que o tempo teve de andar e o que as mulheres tiveram de esperar: e, mesmo assim, a Convenção não foi aprovada por unanimidade. O pior mal, porém, não é que tenha havido países contrários a essa aprovação, mas sim que até mesmo nos países que deram voto favorável, ao nível de representação nacional, vida quotidiana continue a ser para as mulheres urna contínua luta para que se não percam os frutos escassos da vitória. 
O Dia Internacional da Mulher deveria ser, sobretudo, um lia de exame de consciência para os homens. O verdadeiro pecado original, se bem pesarmos o significado das palavras, talvez seja esta milenária discriminação que fez do mundo um lugar governado por metade das pessoas que nele vivem: os homens. Não todos, evidentemente..." 

in "As opiniões que o DL teve"
08/03/1972

(NR: Bold meu)

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