Crónica publicada no "Diário de Lisboa", sobre a precária condição feminina e a crítica mordaz contra os direitos por cumprir e reconhecer. 44 anos depois muitos deles, os direitos, estão por cumprir.
Rui Santos
Pintura de José Santa-Bárbara, retratando a mulher do médico e o cão das lágrimas,
personagens da obra "Ensaio sobre a Cegueira"
"O Dia Internacional da Mulher"
(8 de março de 1972)
"Comemora-se hoje o Dia Internacional da Mulher. Os modos de assinalar a data hão de variar certamente de país para país, e não cremos que o nosso se inclua no número dos mais pródigos em manifestações: a verdade é que somos bastante avessos a exprimir publicamente o que pensamos, quando de facto pensamos alguma coisa.
No caso presente, temos até fortes dúvidas sobre uma geral compreensão do que signifique a existência de um Dia Internacional da Mulher, quando se sabe que a ninguém passou pela cabeça instituir o Dia Internacional do Homem... Um espírito irónico insinuaria que, sendo o mundo dos homens, mal parecia que eles se festejassem a si mesmos, quer em termos de confraternização quer em termos de reivindicação. Há um Dia Internacional da Mulher como há um Dia Internacional da Criança, e esta aproximação já nos dirá melhor que é no plano da sujeição que estes dois seres (a criança e a mulher) se encontram. O Dia Internacional da Mulher serve, enfim, para relembrar o que foi a difícil caminhada dessa parte da humanidade a que os homens vão buscar, com mais ou menos hipocrisia, as redenções de que dizem carecer: a mãe, a irmã, a noiva, a esposa...
Mas o Dia Internacional da Mulher há de servir também para mostrar quão longe ainda está a mulher de pacificamente aceitar como possível o mundo em que vive. Em todos os planos de promoção (social, intelectual, jurídico, económico e político), a mulher segue o homem. Com mais rigor diríamos que a mulher é mantida atrás do homem: muitas das suas conquistas são apenas aparência, e, quando se tornam reais, correm o risco de, com maior ou menor rapidez, perderem conteúdo e poder de aplicação prática. Na maior parte dos casos, o tempo e os interesses dos homens encarregam-se de neutralizar as conquistas alcançadas: a emancipação (no plano económico, através do trabalho remunerado, no plano intelectual, graças ao desenvolvimento da instrução, e no plano político, pela obtenção dos direitos de voto e de elegibilidade) encontra-se ainda hoje limitada por mil e uma pequenas teias. À volta da mulher continua a tecer-se o emaranhado casulo que a manteve isolada do mundo. Há exceções, bem sabemos, mas essas, ao que dizem, só existem para confirmar a regra...
Vai longe o ano de 1971 em que o Olympe de Gouges escrevia a sua «Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã»; já vai igualmente longe a época de Mrs. Pankhurst, aquela inglesa que criou, no princípio do século, a União Feminina Social e Política, e que mereceu, com as suas companheiras de missão e de luta, o apodo displicente, senão desprezativo, de «sufragista». Mas é apenas de ontem, de 1952, para sermos mais exatos, a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher, aprovada, por maioria, pela Assembleia Geral das Nações Unidas... Veja-se o que o tempo teve de andar e o que as mulheres tiveram de esperar: e, mesmo assim, a Convenção não foi aprovada por unanimidade. O pior mal, porém, não é que tenha havido países contrários a essa aprovação, mas sim que até mesmo nos países que deram voto favorável, ao nível de representação nacional, vida quotidiana continue a ser para as mulheres urna contínua luta para que se não percam os frutos escassos da vitória.
O Dia Internacional da Mulher deveria ser, sobretudo, um lia de exame de consciência para os homens. O verdadeiro pecado original, se bem pesarmos o significado das palavras, talvez seja esta milenária discriminação que fez do mundo um lugar governado por metade das pessoas que nele vivem: os homens. Não todos, evidentemente..."
in "As opiniões que o DL teve"
08/03/1972
in "As opiniões que o DL teve"
08/03/1972
(NR: Bold meu)
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