Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 13 de agosto de 2016

"30 anos a rever as palavras de Saramago" - Rita Pais, revisora da obra de José Saramago

Muito mais que revisora das obras de José Saramago.
Com este propósito recolho algumas palavras que constam na obra de João Céu e Silva - "Uma longa viagem com José Saramago" (2009, Porto Editora), e que complementam ou introduzem a entrevista que recupero.

"E por falar deste assunto de gralhas e revisões chegou o dia combinado em que se foi à sede da Fundação José Saramago para escutar de viva voz o relato da colaboração entre o escritor e a pessoa que tratou de quase toda a sua obra - e que aguarda pelo próximo livro para preparar o original antes da impressão. Chama-se Rita Pais (n. 1952) e acha que teve sorte ao caber-lhe esta tarefa numa altura em que terminara a faculdade e conseguiu emprego na Editorial Caminho, onde José Saramago tinha entregado a peça A Noite para publicar. Depois de uma passagem breve por vários sectores da empresa, acompanhou de uma forma incipiente — «ele também estava a começar, apesar de ser um autor já conhecido mas ainda sem a projecção que viria a ter» — essa edição, o primeiro trabalho com que teve contacto. Depois, veio o romance Levantado do Chão mas como nesse ano estava também a dar aulas já só teve contacto com a obra numa fase de quase publicação. Depois desse romance, recorda, «não me lembro de ter ficado por passar os olhos por nenhum». Quando se lhe pergunta se José Saramago aceitava bem as suas sugestões, a resposta é que sim e «muito bem. É óbvio que as sugestões que eu lhe poderia fazer nunca seriam de fundo mas acontece com qual-quer autor ter uma repetição, haver um facto que foi já mais ou menos falado ou aflorado, uma personagem que tem o nome trocado» mas, ressalva, «quanto a erros de ortografia nem pensar, ele não dá», nem se lembra de ter encontrado um erro: «às vezes há algumas pequenas divergências porque, por exemplo, ele usa por sistema a forma arrepiar, que é perfeitamente legítima, e os leitores comentavam esse facto mas, digamos, é uma particularidade de escrita que o autor tem»." 
(Páginas 166 e 167)

"Rita Pais lembra-se de muitas histórias de uma relação em que começou jovem a rever os textos de José Saramago e na qual ainda, mesmo já não estando na Editorial Caminho, é a responsável pela preparação dos seus originais. Pelo meio destas três décadas existem muitas datas que a marcaram mas há uma que nunca esquece, a do anúncio do Prémio Nobel. Como já tinha estado quase tantas vezes perto de o ganhar «já nem ligávamos mas naquele dia estava na Caminho, tinha o rádio ligado, e lembro-me bem de quando se ouviu a notícia. Não sei explicar o que senti, ficámos paralisados por uns momentos e depois foi uma explosão dentro de nós. A seguir, os telefones não paravam, eram os jornais, as rádios, as televisões, do estrangeiro, até parecia que pela primeira vez na vida havia José Saramago! Pensei: E agora? Como é que vai ser isto com um Nobel? Agora vai ser muito mais complicado... Mas não, era a mesma a tranquilidade, a mesma disponibilidade, a mesma generosidade, nenhuma alteração». Quanto a livros preferidos, Rita Pais começa por destacar uma das suas epígrafes — «Se podes olhar vê, se podes ver repara» — só depois escolhe O Evangelho Segundo Jesus Cristo porque «é uma pintura, que não tem nada a ver com o religioso. É um livro que ultrapassa qualquer visão dos dogmas do cristianismo, dos evangelhos apócrifos. Não vou dizer que é o livro mais bem escrito, que é aquele em que as qualidades literárias mais sobressaem mas leio-o como se estivesse a descodificar um quadro e foi sempre aquele que mais me comoveu em termos de generosidade, de humanidade e quase de decifração do que é o ser humano»."
Página 172 

A obra mencionada de João Céu e Silva, e que aconselho vivamente a sua leitura, remete para as páginas 166 a 172, preciosos dados e momentos vividos ao longo dos tempos entre José Saramago e Rita Pais.





A presente entrevista é recuperada e pode ser consultada, em duas partes, aqui

"30 anos a rever as palavras de Saramago"
16 de novembro de 2012

Rita Pais foi a revisora dos livros de José Saramago durante cerca de 30 anos, na Editorial Caminho. Desde há cinco anos integra a equipa da Fundação José Saramago, após o convite que lhe foi estendido por José Saramago e Pilar del Río. As suas funções na instituição são diversas, mas trabalha principalmente no serviço educativo, que começou a funcionar neste outono. Também faz ocasionalmente algumas visitas acompanhadas e constata que o que os visitantes da fundação procuram é «algo físico, algo que represente o autor». «Quando digo às pessoas que já tenho 30 anos de trabalho com Saramago, olham para mim como se fosse um dinossauro [risos]. Desperta um interesse e uma curiosidade normais. Quando veem a Pilar, é ainda outra reação, mas quando as pessoas me veem, nota-se que há uma necessidade do tato, das histórias, até para entender melhor o escritor, que não era uma figura de ficção, era uma pessoa normal.» E é nessa acentuação do lado humano de uma pessoa que se desmistifica o autor.

O contacto com o público é uma novidade para Rita Pais, mas é algo que a satisfaz. «É muito gratificante para todos nós. Que eu tenha dado conta, ninguém tem saído triste ou dececionado da fundação. Há sempre muitos sorrisos, muitas lágrimas, muita emoção», afirma. Conta-nos que Saramago mantinha uma relação muito bonita com os seus leitores. «Aquela afabilidade, aquela palavra certa para cada um foi uma das coisas que me marcaram. Um dos atos poéticos a que assisti anos a fio foi de facto esse contacto com o público. Horas e horas em que aquela palavra amável, simpática, não parava», recorda.

Sente falta de ser revisora? Responde afirmativamente. «Ainda hoje recorro muito frequentemente ao dicionário em papel.» E vê como um privilégio o contacto que teve com alguns autores portugueses de várias gerações e as suas respetivas obras, que lhe passaram pelas mãos. «A Caminho tinha um catálogo de autores de eleição, e tive oportunidade, através do meu trabalho, de conhecer a literatura africana, por exemplo. Foi uma aprendizagem inestimável.»

Mas mudar de trabalho, ainda que para a fundação, não foi fácil. «Foi uma mudança difícil. Não é fácil mudar após 30 anos», confessa, sobre a saída da Caminho e o início do seu trabalho na fundação. «Para nós isto não é um emprego vulgar, é uma causa de amor.»

E trabalhar na instituição foi uma forma de manter a ligação ao autor e à sua obra, que tão bem conhece. «Foi uma forma de continuar ligada a José Saramago. A editora foi vendida, e eu ia começar do zero. Foi nessa altura que a Fundação José Saramago foi criada e, por um conjunto de coincidências, surgiu o convite. “Quero que venhas trabalhar para a Fundação Saramago”, disse-me ele. “Tens 20 minutos para pensar, e depois eu passo cá”», conta entre risos. «Fiquei emocionada. Disse sim, de imediato, mesmo sem saber o que era uma fundação.»

«Os revisores são como os guarda-redes»

Ficou bastante surpreendida ao ver o seu nome no texto de História do Cerco de Lisboa. «Isso foi uma surpresa. Nessa altura Saramago ainda estava em Portugal e às vezes passava pela editora. Um dia disse que tinha uma ideia para um livro novo que envolvia editores. Algum tempo mais tarde, quando já tinha uma estrutura, disse-lhe: “Ó José, francamente, toda a gente fala dos editores, mas ninguém menciona os desgraçados dos revisores, que aturamos tantas coisas. [Os revisores] são como os guarda-redes, ninguém fala deles, só quando deixam entrar golos.” Ele ficou um pouco pensativo e, passado algum tempo, disse que tinha mudado um pouco o curso da história.»

«Depois veio o original, eu comecei a ler e fiquei deslumbrada, não só porque lá estava um revisor, mas não fazia ideia de que iria incluir o meu nome», declara. «Na última fase do livro, faltava um caderno, que não me chegava às mãos. O editor, o senhor Coelho, dizia-me para não me preocupar com isso. Quando finalmente o livro saiu, Saramago apareceu com um exemplar na editora e disse-me para abrir o livro em determinada página e ler. Comecei a ler em voz alta e li o meu nome. Continuei a ler, mas parei depois quando me dei conta de que o meu nome lá estava. Só me lembro de ter largado o livro, de me ter levantado e de lhe ter dado um abraço. E ele era tão alto, e eu, tão baixinha… Dei-lhe um abraço daqueles que não se esquecem a vida inteira. Não sei se muitos autores teriam feito o que ele fez, lembrarem-se de uma revisora. Quando o livro saiu, creio que ele mencionou essa homenagem, e eu sinto-me privilegiada por o ter conhecido. Por ter tido essa dádiva de conviver com um autor dessa craveira. Foi uma atitude tão generosa, tão altruísta.»

«Já tive perdas de familiares, mas, a seguir ao meu pai, [o falecimento de José Saramago] foi a perda que mais senti. Fica uma grande saudade. Foi uma pessoa que ocupou um papel muito importante na minha vida, com quem aprendi muito sobre literatura.»

Leia aqui a segunda parte.

"30 anos a rever as palavras de Saramago – parte II"
16 de novembro de 2012

O primeiro contacto com Saramago

«Lembro-me perfeitamente da primeira vez que o conheci. Estava no gabinete do diretor editorial, e ele disse-me que ia chegar um livro novo. De repente, disse: “Aí está o autor.” Levantei-me, e Saramago, com toda a naturalidade do mundo, disse: “Ah, esta é que é a Rita?”»

Começou a rever as obras de Saramago estava há pouco tempo na Editorial Caminho. «Entrei na empresa em 1976 e cerca de um ano e meio depois, em 1978, entrou Saramago. Os primeiros contactos foram feitos pelo editor, claro, mas percebi a certa altura que ele e outros autores começaram a ter confiança em mim, entrei com facilidade na escrita dele, e talvez por isso nos tenhamos aproximado. Criou-se uma empatia entre os dois.» Houve discordâncias? «Não eram propriamente discordâncias. Havia momentos em que propunha alterações. Nunca houve respostas ríspidas. Saramago dizia que ia pensar. Nunca nos zangámos. Ele nem sequer dava muito trabalho.» Nos seus últimos livros, admite que «recorria a uns certos castelhanismos, tinha tendência a usar pequenas expressões castelhanas.» Mas nada muito difícil de resolver.


Nunca lhe aconteceu sugerir melhoramentos além dos linguísticos. «Ele era perfeito. Às vezes era necessário ajustar concordâncias verbais e procurava as redundâncias. Enquanto pudemos, fizemos a revisão juntos, ou via telefone. Era fácil reconhecer o que ele queria e o que não queria. Num episódio do Memorial do Convento, assinalei a palavra «tissu» e coloquei um ponto de interrogação. Um dia ele chega, senta-se à frente da secretária e diz: «Então vamos lá ver esse tissu [risos].»

Um autor universal

«Embora dissesse que não sabia escrever para crianças, sabia ir ao encontro de todos os leitores.» Contudo, só se apercebeu da dimensão além-fronteiras do autor depois de ter começado a trabalhar na fundação. «Só tive noção da projeção internacional de José Saramago depois de ter vindo para a fundação. Pessoas de todas as partes do mundo contactam-nos. A minha perspetiva mudou. Na editora tinha uma perspetiva que se centrava na palavra, e de repente a palavra traduziu-se em 54 línguas.»

O seu trabalho foca-se agora na preservação desse legado universal do autor. «Fazemos tudo ao nosso alcance para preservar a sua memória, a sua obra», declara. Um trabalho que, como outro qualquer, tem dias menos fáceis, mas que a satisfaz. «Chegar aqui e olhar para a oliveira numa manhã difícil melhora o nosso dia», afirma, não sem relembrar que 30 anos deixam as suas marcas: «É uma vida de muita saudade. Dele e do meu trabalho.»

«… na parede o quadro de registo onde, podia vê-lo, se lia o seu nome,  na linha superior, e por baixo os nomes dos outros revisores que trabalhavam em casa, tendo, todos eles, no quadriculado adiante, indicações abreviadas de títulos de obras, datas, sinais coloridos, um organigrama simples, uma espécie de mapa da cidade dos revisores, não mais que seis. Podemos imaginá-los, cada um em sua casa, no Castelo, nas Avenidas Novas, talvez em Almada ou na Amadora, ou Campo de Ourique, na Graça, debruçados para as provas de um livro, lendo e emendando, e a doutora Maria Sara pensando neles, alterando uma data, trocando um verde por um azul, daqui a pouco tempo nem dará importância aos nomes, serão para ela um mero traçado gráfico que lhe suscitará ideias, associações, reflexos, por enquanto cada um destes nomes representa ainda uma informação a assimilar, Raimundo Silva primeiro, depois Carlos Fonseca, Albertina Santos, Mário Rodrigues, Rita Pais, Rodolfo Xavier…»

[História do Cerco de Lisboa. Lisboa: Editorial Caminho, 2006, pp. 168-169 (7.ª edição)]

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