Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 13 de agosto de 2016

José Saramago e Azio Corghi no "Mil Folhas" do jornal Público (Março de 2006)

O presente artigo pode ser recuperado e consultado, aqui
em http://josesaramago.blogspot.pt/2006/03/jos-saramago-e-azio-corghi-no-mil.html

O suplemento "Mil Folhas", editado hoje com o jornal Público, publica um artigo sobre a ópera O dissoluto absolvido, a qual estreia hoje à noite no Teatro Nacional de São Carlos. Pela sua manisfesta relevância didáctica, aqui fica transcrito o texto de Cristina Fernandes:

"D. Giovanni: "Absolvido, mas por quanto tempo?"

O próximo espectáculo da temporada lírica do Teatro Nacional de São Carlos (com estreia marcada para hoje, às 20h, e repetições nos dias 20, 22, 24 e 26) propõe três obras curtas em um acto, obras que de diferentes maneiras se manifestam em ruptura com as convenções ou os códigos instituídos: "Erwartung" (Espera), de Schoenberg; "Sancta Susanna", de Hindemith (estreia em Portugal); e "Don Giovanni, Il Dissoluto Assolto" (O Dissoluto Absolvido), com libreto do escritor José Saramago e música de Azio Corghi (n. 1937), que terá a sua estreia mundial nesta ocasião. A direcção musical será de Marko Letonja e a encenação de Andrea De Rosa.
Depois de "Blimunda", baseada no "Memorial do Convento", e de "Divara-Água e Sangue", a partir do drama teatral "In Nomine Dei", Don Giovanni constitui a terceira colaboração entre o compositor italiano e o escritor português no domínio do teatro musical, com a particularidade de Saramago ter escrito desta vez um libreto de raiz. Corghi apenas adaptou alguns detalhes no momento de dar "voz musical" ao libreto.
A edição da Editorial Caminho do texto original de Saramago é acompanhada por um interessantíssimo texto de Graziella Seminara que relata com grande detalhe a forma como os dois autores foram construindo e discutindo a obra através de uma intensa troca de "emails". Saramago parte de Da Ponte para fazer uma releitura pessoal do mito que transforma o sedutor em seduzido e que lhe retira a conclusão moralista e a punição por uma entidade sobrenatural. A punição do libertino chega pelas mãos de D. Elvira, D. Ana e D. Otávio que se unem para lhe causar a humilhação maior negando as suas conquistas e a sua virilidade, que o famoso catálogo (trocado às escondidas por um livro em branco por D. Elvira) não mais poderá testemunhar...
"Era certo que sempre havia pensado que D. Giovanni não podia ser tão mau como o andavam a pintar desde Tirso de Molina, nem Dona Ana e Dona Elvira tão inocentes criaturas, sem falar do Comendador, puro retrato de uma honra social ofendida, nem de um Don Otavio, que mal consegue disfarçar a covardia sob as maviosas tiradas que no texto de Lorenzo da Ponte vai debitando", escreve o escritor José Saramago no prefácio desta obra teatral.
Don Giovanni aceita corajosamente a punição que lhe é proposta por um comendador preso numa estrutura gerida por convenções, não procurando salvaguardar-se hipocritamente num perdão corruptor da sua responsabilidade ética. Será salvo por Zerlina, parecendo despertar para uma nova existência assinalada também simbolicamente pelo catálogo que Leporello queima na lareira. Mas a dúvida fica no ar, colocada pelo enigmático manequim de D. Elvira: "Absolvido, mas por quanto tempo?"
A ópera, encomendada pelo Teatro alla Scala de Milão para figurar num programa com "Sancta Susanna", de Hindemith, esteve para ser estreada em Milão no ano passado mas o período conturbado vivido pelo prestigiado teatro italiano há cerca de um ano, que levou à demissão de Muti e a várias greves dos músicos, fez com que a estreia mundial transitasse para Lisboa.

A dupla Corghi e Saramago

Azio Corghi já escreveu sete obras musicais sobre textos de Saramago, sendo esta a terceira colaboração no campo da ópera. Para o compositor italiano a literatura é uma grande fonte de inspiração quando se trata de encontrar temas teatrais. O que mais o fascina em Saramago, "um homem que denuncia as injustiças do mundo mas que tem uma grande sede de viver", é o facto de cada obra literária do escritor português conter tudo lá dentro: "romance, poesia, teatro, música!", disse Corghi ao PÚBLICO.
A música começou a ser composta antes de o libreto estar completamente pronto, mas foi sendo ajustada em função das longas conversas que os dois autores iam tendo por "email", ditando o texto vários dos procedimentos musicais. "O próprio Saramago partiu do texto de Da Ponte, por exemplo logo no Prólogo com D. Elvira e Leporello, introduzindo a famosa ária do catálogo. E no decurso da ópera cita várias vezes o texto de Da Ponte. Havia uma indicação clara para eu pegar na ária de Leporello, mas tratando-se de uma releitura da história, faço um trabalho de ironia através das citações."
Esta obra difere muito de "Blimunda" e "Divara" uma vez que se tratava de "histórias trágicas bastante mais densas". Para Corghi "o D. Giovanni reflecte uma outra ligeireza - uma certa elegância e "souplesse", que tentei também recuperar na música." Num processo inverso ao de "Divara" no "Dissoluto Absolvido" as personagens masculinas cantam e as femininas falam: "Não se trata de um "parlato" livre mas de um "parlato" rítmico escrito sobre a música. Do "parlato" passam ao "sprechgesang" ou mesmo ao canto", explicou o compositor. "Duas das actrizes também são cantoras e conseguem realizar muito bem este trabalho."
Cada personagem tem uma expressão musical própria, mas ao contrário do que fez Mozart, Corghi não se preocupa em caracterizar tipos sociais (aristocráticos ou populares). "As personagens são caracterizadas por timbres e temas musicais (alguns derivados de cantos populares italianos). Sempre trabalhei com citações musicais, com homenagens musicais onde se pode revisitar toda uma história. Para além dos temas populares usei temas da música clássica que são inseridos como provocação ou ironia. No início, quando o coro sussurra, cria uma espécie de vento, depois ouve-se o tema da ária da Calúnia de Rossini... Nesse momento chegam D. Ana, D. Elvira e D. Otavio que irão caluniar D. Giovanni, dizer que é impotente, que nunca conquistou nenhuma mulher."
Às citações musicais contrapõem-se situações de forte intensidade dinâmica e variedade tímbrica, favorecidas por uma orquestra imponente. Uma vez que o projecto nasceu por iniciativa do Teatro alla Scala de Milão e se destinava a um programa que também incluía "Sancta Susanna" Corghi optou por usar uma orquestra de grandes dimensões semelhante à que é usada por Hindemith. "Juntei-lhe ainda - não sei se por paixão se pelo facto de conhecer muito bem os instrumentistas da Orquestra do Teatro alla Scalla - uma grande secção de percussão que confere à obra um sabor muito rítmico, que também existe nos cantos populares. Diverti-me a procurar soluções orquestrais e tímbricas. Há também um trabalho de "espelhos" no tecido musical, que refletem a polirritmia, polimetria", continua o compositor italiano.
O coro masculino tem um papel importante como comentador da acção (à maneira da tragédia grega), mas também colocando perguntas e respostas. Permanecerá por detrás do palco até ao final da obra. As suas intervenções oscilam entre os jogos fonéticos e a clareza das palavras. Corghi refere que tanto "intervém como "venticello" [vento], quando acompanha o tema rossiniano da calúnia, murmurando e sussurando, como pode explodir nos momentos mais enfáticos das intervenções do Comendador." A ambiguidade dos seus comportamentos é jogada sobre a exclamação e a interrogação e no Intermezzo cantará "a cappella", a "berceuse" do tema de Zerlina.

Uma obra provocatória

Tal como Don Giovanni também "Sancta Susanna" na ópera de Hindemith recusa arrepender-se do seus desejos carnais, sofrendo o supremo castigo de ser emparedada viva. Baseada no drama homónimo de August Stramm, faz parte do conjunto das três primeiras óperas, de Paul Hindemith, todas em um acto, criadas no início dos anos 20: "Mörder, Hoffnung der Frauen" (1921), "Das Nusch-Nuschi" (1921) e "Sancta Susanna" (1922). Reflexo do estado de espírito que se sucede à bárbara carnificina da primeira Grande Guerra, as obras causaram escândalo por causa dos seus libretos que chocaram a moral burguesa pela forma explícita e, por vezes provocatória, como abordam a sexualidade.
"Erwartung", composta em dezassete dias nos finais de 1909 é uma das primeiras obras atonais de Schoenberg e um exemplo emblemático do Expressionismo. Trata-se de um monodrama em que uma mulher procura no meio de um bosque, com crescente e cada vez mais torturante ansiedade, o homem a quem apaixonadamente ama e pelo qual sente um implacável ciúme, encontrando-o por fim morto.
O maestro Marko Letonja considera que a ideia do director do Teatro Nacional de São Carlos, Paolo Pinamonti, de colocar a "Erwartung" de Schoeberg entre a ópera de Hindemith e a ópera de Corghi é muito pertinente. "Temos duas óperas do início do século XX e uma criação recente, sendo muito interessante encontrar os pontos de contacto e as divergências. Em Schoenberg e Hindemith o Expressionismo é abordado de dois pontos de vista completamente diferentes. Ambas as obras retratam uma intensa evolução das emoções e solicitam um canto muito expressivo, embora sem frases em "cantabile" no sentido clássico. Na composição de Corghi os homens cantam e as mulheres falam. No Schoenberg, uma mulher fala e canta. No Hindemith cantam todos. Mas o "sprechgesang" está presente nas três obras.", disse ao PÚBLICO o maestro.
A evolução psicológica das personagens nas obras de Hindemith e Schoenberg é um dos aspectos mais fascinantes mas também um dos maiores desafios da interpretação. "Uma coisa é o que se sente, outra é o que se pensa. Em "Erwartung" temos o bosque e o medo por um lado e por outro as recordações. Há muitas perguntas em aberto. A protagonista tinha morto ou não o marido? Schoenberg e Freud nunca se encontraram, mas é quase certo que Schoenberg estudou alguns dos seus casos de histeria. Na "Sancta Susana" Klementia conta um episódio que depois volta a acontecer. Trata-se de expressões visíveis mas também do desenvolvimento mental das personagens. Além das dificuldades de interpretação dramática há também grandes desafios técnicos", diz o maestro. Schoenberg escreveu "Erwartung" para um soprano dramático, mas a partitura tem muitas passagens na oitava baixa. "Estou muito contente por ter Brigitte Pinter a fazer o papel. É uma cantora como uma tessitura entre o meio-soprano e o soprano, um meio-soprano com agudos, portanto ideal. É um papel terrível, meia hora de música com três intervalos de uns 15 segundos para cantora! Supera a Isolda de Wagner em dificuldade."
Esta é a primeira obra de Corghi que Marko Letonja dirige mas a tarefa não foi difícil para ele porque "a partitura era muito clara", explica. "Era como se a música escrita me falasse. Pelo contrário em Schoenberg senti mais a necessidade de analisar o que ele escreveu antes e depois. "Erwartung" situa-se após o período da música pós-romântica e antes do dodecafonismo. Um dos pontos mais fascinantes da partitura é a polifonia. Há poucas linhas dobradas, a orquestra é tratada como uma enorme orquestra de câmara chegando a haver 15 linhas ao mesmo tempo que se cruzam.""

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