Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 11 de novembro de 2014

A causa "Chiapas" pelo seu punho

José Saramago recusava a postura do escritor de secretária, que com toques e artifícios de génio publicava os seus "escritos". Saramago não se acomodou à secretária, vivia o mundo, viajava pelos cantos mais diversos deste planeta, experenciava várias influências que o mantinham sensível tanto ao ideal nacional e ibérico, como não descurava a luta dos povos deste mundo que se mantinham subjugados a governos, ou a grupos de interesses que condicionam os governos para seu interesse.
Saramago era isto.

"Uma Longa Viagem com José Saramago"
de João Céu e Silva
Porto Editora, páginas 28 e 29

(...) "José Saramago não pára de viajar pelo mundo e de se integrar nas causas que defende e que sente que necessitam do apoio de um Prémio Nobel como mais um dos seus defensores. Com pedidos vindo de toda a parte do planeta, os últimos anos do escritor têm sido repletos de deslocações constantes, de presenças em manifestações e em apresentações dos seus livros e de outros em vários países, de discursos em palanques e palcos, de participações em debates, de entrevistas, de assinaturas em manifestos e de inaugurações de exposições, seja sozinho ou ao lado dos líderes políticos mais importantes do mundo, seja com as Mães de Maio na Argentina seja com os palestinos ou com os índios Chiapas. (...)

Aqui também pelo seu testemunho.

Revista Visão
José Carlos de Vasconcelos
16 de Janeiro de 2003

(...)
Uma das várias batalhas, na América Latina, em que tiveste intervenção activa foi a de Chiapas, de que agora não se tem falado. O que sucedeu?
A Latino-América tem muitos e muito graves problemas. Mas tem um «especial», que é o problema indígena. E às vezes parece haver a convicção de que ele se resolve com o tempo. Houve um longo e lento genocídio dos indígenas: nuns casos foi a eliminação física, noutros foi a entrega o abandono dessas populações à sua (má) sorte. Um exemplo, entre outros, é o da Guatemala, onde essa população representa 50% do total.
Em Chiapas, o que houve foi uma guerrilha armada, zapatista, que não durou muito. Parte desse exército refugiou-se na selva. E através de meios como a internet, conseguiu dar dimensão internacional à sua luta. Depois dos acontecimentos conhecidos que tiveram repercussão mundial, como a longa marcha até à Cidade do México, o comandante Marcos esteve muitos meses calado. Recentemente escreveu uma carta, a propósito da ETA, que foi um erro político. Chiapas é muito rica - em petróleo, água, café, cacau, aquilo, aqueloutro - e a sua situação está num beco sem saída. O que parece é que toda a gente está à espera que as populações se afundem, se dissolvam, desapareçam, não se sabe porque artes mágicas, para caírem em cima daquilo e se apropriarem de tudo.

A situação é particularmente difícil na América Central...
A situação é dramática. E se os EUA se comportam como se comportam em relação ao resto do mundo, então ali, que se consideraram um seu feudo, imagine-se! (...)




Aqui o texto publicado, em http://caderno.josesaramago.org/58506.html

"O sangue em Chiapas"

Todo o sangue tem a sua história. Corre sem descanso no interior labiríntico do corpo e não perde o rumo nem o sentido, enrubesce de súbito o rosto e empalidece-o fugindo dele, irrompe bruscamente de um rasgão da pele, torna-se capa protectora de uma ferida, encharca campos de batalha e lugares de tortura, transforma-se em rio sobre o asfalto de uma estrada. O sangue nos guia, o sangue nos levanta, com o sangue dormimos e com o sangue despertamos, com o sangue nos perdemos e salvamos, com o sangue vivemos, com o sangue morremos. Torna-se leite e alimenta as crianças ao colo das mães, torna-se lágrima e chora sobre os assassinados, torna-se revolta e levanta um punho fechado e uma arma. O sangue serve-se dos olhos para ver, entender e julgar, serve-se das mãos para o trabalho e para o afago, serve-se dos pés para ir aonde o dever o mandou. O sangue é homem e é mulher, cobre-se de luto ou de festa, põe uma flor na cintura, e quando toma nomes que não são os seus é porque esses nomes pertencem a todos os que são do mesmo sangue. O sangue sabe muito, o sangue sabe o sangue que tem. Às vezes o sangue monta a cavalo e fuma cachimbo, às vezes olha com olhos secos porque a dor lhos secou, às vezes sorri com uma boca de longe e um sorriso de perto, às vezes esconde a cara mas deixa que a alma se mostre, às vezes implora a misericórdia de um muro mudo e cego, às vezes é um menino sangrando que vai levado em braços, às vezes desenha figuras vigilantes nas paredes das casas, às vezes é o olhar fixo dessas figuras, às vezes atam-no, às vezes desata-se, às vezes faz-se gigante para subir às muralhas, às vezes ferve, às vezes acalma-se, às vezes é como um incêndio que tudo abrasa, às vezes é uma luz quase suave, um suspiro, um sonho, um descansar a cabeça no ombro do sangue que está ao lado. Há sangues que até quando estão frios queimam. Esses sangues são eternos como a esperança.


Quarta-feira, 19 de Agosto de 2009



Todos somos Chiapas

Artículo escrito en primera persona por José Saramago, resultado de sus impresiones recogidas durante su viaje a Chiapas, con motivo de los disturbios que enfrentaron a la población indígena con el gobierno mexicano, y publicado en La Revista del diario español El Mundo. 

"He visto el horror. No el que hemos observado en lugares como Bosnia o Argelia. No. Éste es otro tipo de horror. Estuve en Acteal, en el mismo lugar de la matanza... escuchando a los supervivientes. Es difícil expresar lo que se siente cuando uno sabe que se encuentra con los pies sobre el mismo lugar donde hace tres meses asesinaron a estas personas. 

Me imaginaba la escena... La gente tratando de escapar... los paramilitares disparando a discreción... las mujeres y los niños gritando, huyendo entre la maleza... el lamento de los heridos... 

En Chiapas se vive una situación de guerra o una ocupación militar, que al final es casi lo mismo. No es una guerra en el sentido común, con un frente y dos partes confrontadas. Yo nada más he visto una parte confrontada: el Ejército y los paramilitares. La otra parte, las comunidades indígenas, no están enfrentándolos, no tienen medios. Están rodeados, no tienen comida ni agua... Viven en condiciones infrahumanas. Son casi campos de concentración. No los reunieron allí a la fuerza, es cierto, pero cuando huyeron a esos lugares (se refiere a los campos de refugiados) los rodearon los paramilitares y el Ejército. Entonces esos campamentos se convirtieron en una especie de campo de concentración. 

Si alguna vez hubo en la historia de la humanidad una guerra desigual, no la hubo nunca como ésta. Es una guerra de desprecio, de desprecio hacia los indígenas. El Gobierno esperaba que con el tiempo se ¡acabaran! todos, simplemente eso. 

Pero ellos sobreviven, alimentándose de su propia dignidad. No tienen nada, pero lo son todo. Enfrentan la guerra con ese estoicismo que me impresionó tanto, un estoicismo casi sobrehumano que no aprendieron en la universidad, que consiguieron tras siglos de humillación. Han sufrido como ninguno y mantienen esa fuerza interior, una fuerza que se expresa con la mirada... La mirada de ese niño al que le han destrozado para siempre la vida... (Saramago conoció al pequeño de cuatro años Gerónimo Vázquez al que los paramilitares amputaron cuatro dedos en Acteal) Es algo que no se me borrará jamás de la memoria... Las miradas serias, severas, recogidas de las mujeres, de los hombres... son algo que está por encima de todo. Los indígenas no tienen nada, pero lo son todo. ¿Cómo es posible que después de tanto sufrimiento ese mundo indio mantenga una esperanza? ¿Cómo puede sonreír ese hombre de Polhó que nos acaba de decir "mañana puede que nos maten a todos, pero bueno, aquí estamos"? Es algo que no alcanzo a entender.

En Chiapas encontré un mundo que no comprendo. El mundo indio es un mundo donde el europeo no puede entrar fácilmente. Es como si me asomara a una ventana que da a otro mundo y, aunque lo tengo enfrente, no lo puedo entender. 

También descubrí otra realidad, la de un territorio ocupado militarmente. Un territorio donde los paramilitares y el Ejército son la uña y la carne juntas. Por una razón muy sencilla: de no ser así, los paramilitares no podrían haber hecho lo que hicieron y lo que siguen haciendo. Yo vi camiones del Ejército transportando a civiles que seguro no viajaban allí por la amabilidad de los militares. Minutos después de que abandonáramos Acteal hubo un acto de intimidación e hicieron hasta 30 disparos al aire. Esto sólo puede ocurrir si el Ejército da su bendición. Nada más fácil para el Ejército que identificar a los paramilitares y desarmarlos. 

Me parece esquizofrénico que el Congreso pueda estar debatiendo una ley (el Proyecto de Ley sobre Autonomía Indígena propuesto por el ejecutivo) supuestamente para resolver los problemas de las comunidades indígenas, como si fuera una ley normal, en situaciones normales para objetivos consensuados, cuando al mismo tiempo hay miles de desplazados que no pueden volver a sus tierras, con miedo a ser asesinados, mientras hay una ocupación militar clara en el territorio de Chiapas. Y mientras los paramilitares se pasean tranquilamente y hacen lo que quieren. 

¿Cómo es que no se empieza por pacificar la situación para después discutir una ley donde participen todos los sectores y todas las comunidades? 

Todo se ha hecho sometiendo a los indios de Chiapas a una presión incalificable y esto no puede llamarse humanidad. 

El pueblo de México tiene que reclamar a su Gobierno una paz justa y digna. Yo no puedo, sólo soy un escritor extranjero acusado de injerencia. El pueblo mexicano no puede quedarse parado, dejando que los gobernantes lo decidan todo, hay que bajar a la calle... no estoy pidiendo un levantamiento sino simplemente que las conciencias se manifiesten... estoy pidiendo una insurrección moral, desarmada, étnica... 

Acteal es un lugar de la memoria que no puede de ninguna manera desaparecer. Sabemos lo que ocurrió y no lo queremos olvidar. Chiapas es el cuerpo de México. La sociedad civil debería admirar no sólo a los indios sino a los que se levantaron para defender a esos mismos indígenas. 

De Chiapas me llevo no sólo el recuerdo, me llevo la palabra misma... Chiapas... La palabra Chiapas no faltará ni un solo día de mi vida. Si tenemos conciencia pero no la usamos para acercarnos al sufrimiento ¿de qué nos sirve la conciencia? Volveré a Chiapas, volveré". 

Transcripción de Javier Espinosa 

(Declaraciones concedidas a LA REVISTA por José Saramago (Portugal, 1922) en México DF tras su viaje a Chiapas el 14 y 15 de marzo. En su visita conversó con los supervivientes de la matanza de Acteal en el lugar de la masacre, recorrió después el campo de refugiados de Polhó y hasta se acercó al campamento militar de Majomut, sito en las inmediaciones del asentamiento indígena). 

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