Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Crónica "Cada vez mais sós" numa visão sobre a sustentabilidade do planeta Terra

"c) Que à Fundação José Saramago mereçam atenção particular os problemas do meio ambiente e do aquecimento global do planeta, os quais atingiram níveis de tal gravidade que já ameaçam escapar às intervenções correctivas que começam a esboçar-se no mundo."

Citação constante na Declaração de Princípios, da Fundação José Saramago,
em, http://www.josesaramago.org/declaracao-de-principios/

Considero a crónica "Cada vez mais sós", como sendo, talvez, uma das mais importantes peças literárias de José Saramago, assumindo uma característica unificadora, e ao mesmo tempo, demonstrativa dos seus pensamentos e preocupações.
Neste texto, aflora superficialmente o seu gosto pela ciência e cultura cientifica, ao mesmo tempo, em que assume a reflexão filosófica, com a constatação do isolamento do planeta Terra, como único local habitável, ao ponto de nos deixar sozinhos num imenso e inatingível universo, do qual não se conhecem os seus limites. Por outro lado, também, carrega num dos elementos chave do seu pensamento - o ser humano - poderá(?), o homem ser capaz de assumir a responsabilidade de preservar e fazer perdurar o legado único deste planeta, ou seja, a "vida"? Remata a crónica, com a descrença em relação à indiferença humana, perpetuada no egoísmo que colectivamente está imbuída, demonstrando na realidade o paradigma em que se encerra. O homem, enquanto agente consumidor ávido por defeito e destruidor dos seus recursos naturais, ainda não tomou consciência de que a sua conduta poderá num futuro, levar à sua própria extinção.   
Esta crónica é, como assumia linhas atrás, unificadora e demonstrativa de grande parte do pensamento que José Saramago, nos terá deixado, num tom urgente e carregado de algum dramatismo.
Visionário ou apenas demasiado atento à realidade, neste mundo que no final da década de sessenta, altura em que esta crónica foi publicada no jornal A Capital, ainda não estaria em "cima da mesa" dos governantes, assuntos que por estes "dias", embora politicamente adiados, fazem parte da banalidade das nossas vidas. Hoje, convivemos pacificamente com o degelo irrevogável das calotes glaciares, com a destruição da camada do ozono, com o ataque das petrolíferas na exploração de petróleo em locais da natureza protegidos, com a massificação das desflorestações da florestas, com a extinção em massas de muitas espécies de animais... com, com, com... um sem número de agressões, para as quais José Saramago foi activista através das suas palavras.
Na "Declaração de Princípios" pela qual a Fundação José Saramago, segue o seu "norte", ficou perpetuado este seu valor estruturante para a humanidade. Mas, como é referido, pela indiferença humana em relação aos princípios mais básicos e fundamentais para a espécie humana - "quem vier atrás que feche a porta..."   



"Cada vez mais sós"


"Venho por este meio pedir desculpa aos meus três leitores. Há tempos escrevi neste mesmo lugar uma crónica a que chamei "Um Azul para Marte". Era uma pequena utopia, um breve exercício de imaginação -  mas era também um amargo relance de olhos para os materiais que constituem isto a que chamamos civilização terrestre. Afinal, o Planeta Vermelho, o tal dos canais misteriosos, o que inspirou a Bradbury essas "Crónicas Marcianas", parece estar tão morto como a lua. Dizem-no as fotografias: aquelas crateras tornaram-se, para nós, sinónimo de aridez, desolação, abandono. Esperemos que ao menos haja por lá algum vento, para que o planeta não esteja tão sozinho.
Sozinhos estamos nós, pelos vistos. O sistema solar já não dá grandes esperanças. Júpiter é mole, fluído, não tem consistência para suportar as duras passadas do homem; em Saturno, a temperatura anda pelos cento e cinquenta graus negativos, há metana e amónia, gases nada aconselháveis para pulmões humanos; em Mercúrio, o chumbo estaria sempre derretido no lado voltado para o sol; Úrano e Neptuno são tão frios que os gases familiares só poderão encontrar-se em estado líquido; de Plutão, basta que se diga que é de quatro mil milhões e meio de quilómetros a sua menos distância em relação ao sol; de Vénus parece não haver também muito a esperar; e Marte é a nossa mais recente desilusão.
De maneira que estamos sozinhos. À roda do Sol anda uma coroa de planetas cuja única pedra preciosa - esmeralda, rubi, diamante - é a terra. O resto são poeiras, fornalhas, vórtices de gelo. E aqui, onda e vida foi possível (com poeiras também, algumas fornalhas, gelo que baste), não achámos nada melhor do que inventar processos de igualar em aridez, desolação e abandono, os planetas companheiros. E tão empenhados parecemos nisto que já não nos é impossível abrir vastos poços atómicos, obedecendo ao estilo paisagístico da lua, e agora de Marte: uma espécie de lugar-comum da orografia: a cratera.
Deste meu modesto buraco (perdoe o leitor, mas tudo são buracos, poços, crateras), acho que todos nós devemos repensar o que andamos aqui a fazer. Bom é que nos divirtamos, que vamos à praia, à festa, ao futebol, esta visa são dois dias, quem vier atrás que feche a porta - mas se não nos decidirmos a olhar o mundo gravemente, com olhos severos e avaliadores, o mais certo é termos apenas um dia para viver, o mais certo é deixarmos a porta aberta para um vazia infinito de morte, escuridão e malogro.
Aceitemos que estamos sozinhos. Aceitemo-lo sem desespero. Neste lado da galáxia, num insignificante sistema solar, eis a nossa pátria. Povoam-na três biliões de pessoas, outros satélites vivos que talvez não possam subsistir fora dele. Aceitemos então que estamos sozinho, e, a partir daí, façamos a nova descoberta de que estamos acompanhados - uns pelo outros. Quando pusermos os olhos no céu estrelado, com a furiosa vontade de lá chegar, mesmo que seja para encontrar o que não é para nós, mesmo que tenhamos de resignar-nos à humilde certeza de que, em muitos casos, uma vida não bastará para fazer a viagem - quando pusermos os olhos no céu, repito, não esqueçamos que os pés assentam na terra e que é sobre esta terra que o destino do homem (esse nó misterioso que queremos desatar) tem de cumprir-se. Por uma simples razão de humanidade."

Cróníca originalmente publicada no jornal A Capital, entre 1968 e 1969

em, "Deste Mundo e do Outro - Crónicas"
Caminho
3.ª edição, páginas 215 a 217



Informação sobre as referidas "Crónicas Marcianas" de Ray Bradbury
Aqui, via Wikipédia, em http://pt.wikipedia.org/wiki/Crônicas_Marcianas

"Crônicas Marcianas (no original "The Martian Chronicles") é um livro de contos de ficção científica de 1950, de autoria do escritor estadunidense Ray Bradbury (222 páginas – Editora Doubleday), cujo tema recorrente é a colonização de Marte por humanos com problemas e eventualmente vindos de uma Terra sob a iminência de ser devastada pela Guerra Atômica. Há também conflitos entre aborígenes marcianos com os novos colonizadores. O estilo do livro varia de contos a novela episódica, com histórias de Bradbury originariamente publicadas nos anos de 1940 em revistas de ficção científica. Bradbury mencionou Sherwood Anderson e As Vinhas da Ira de John Steinbeck como influências na estrutura do livro. A obra é similar em sua estrutura a outro livro de contos de Bradbury, chamado The Illustrated Man, que também usa uma história para ligar várias outras entrelaçadas.
Como na “Série da Fundação” de Isaac Asimov, As crônicas marcianas seguem uma “história futura”. Assim, os contos quando reunidos seriam capítulos de uma narrativa maior. O livro é dividido em três partes, pontuadas por duas catástofres: a extinção recente dos marcianos e os paralelos com a iminente extinção da raça humana. A primeira parte (período de janeiro a abril de 2000) detalha as tentativas dos terrestres de explorarem Marte. Na história-chave "—And the Moon be Still as Bright" (-E a Lua ainda brilha) é revelado que a Quarta Exploração descobriu o perecimento dos marcianos por uma praga causada por germes trazidos por uma das explorações anteriores. A segunda parte (dezembro de 2001—novembro de 2005) é quando os terrestres colonizam o desértico planeta e ocasionalmente fazem contato com poucos marcianos sobreviventes. Mas os colonizadores estão mais preocupados em transformarem o planeta em uma segunda Terra. Contudo, com a ameaça de guerra na Terra, a maioria volta ao lar. Com a guerra nuclear, o contato entre Marte e Terra é interrompido. Na terceira parte (dezembro de 2005—outubro de 2026) há os efeitos do pós-guerra e os poucos sobreviventes humanos se tornando os novos marcianos, fazendo uma ponte com "—And the Moon be Still as Bright" e com isso havendo um retorno ao começo.
Na edição de 1997 as datas avançaram em 31 anos (o período agora seria de 2030 a 2057), inclui o conto "The Fire Balloons" e substitui "Way in the Middle of the Air" por um conto de 1952 chamado "The Wilderness", datado de maio de 2034 (equivalente a maio de 2003 na primeira cronologia)."


 

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