Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Excertos da entrevista de Clara Ferreira Alves a José Saramago - Via Revista Contraste (06/1986)



(Aqui, para consulta, link original da publicação, 


"Em Junho de 1986, a revista Contraste publicava uma entrevista feita por Clara Ferreira Alves a José Saramago. O escritor tinha já duas obras muito aclamadas - Memorial do Convento e Jangada de Pedra - mas encontrava-se ainda muito longe do Prémio Nobel. Estava, se assim se pode dizer (e suponho que sim) a dar os primeiros passos da caminhada que o havia de lá levar.

Já tinha 50 anos de carreira. Mas o reconhecimento tardara a surgir. Nesta entrevista, Saramago falou principalmente sobre os seus métodos e as suas convicções enquanto escritor. Pouca gente se lembra desta publicação e menos gente ainda se lembrará deste texto. Por isso mesmo pareceu-me boa ideia divulgá-lo, com a devida vénia.

Começando pelo princípio...

«Lembro-me da minha primeira obra invisível, duplamente invisível. (...) Entrávamos no cinema para ver os cartazes - coisas que dantes se faziam e hoje não! - e lembro-me de que eu "inventava" (...) as histórias dos filmes através dos cartazes, sem os ter visto.»

«Aos 25 anos publiquei um romamce. Foi o editor que sugeriu o título e chamava-se, horrorosamente, Terra de Pecado, o que estava na linha dos filmes do Royal. E não era um romance à francesa, de cento e tal páginas, não, era um romance com trezentas e tal páginas. Acabou a sua existência nas padiolas, que, naquele tempo, tiveram a sua função cultural. Você já não se lembra disso.»

Clara Ferreira Alves (C.F.A.) - E quem é que pecava? A senhora?
José Saramago (J.S.) - A senhora, é evidente! Todas as senhoras pecam, com senhores, às vezes com outras senhoras... (Risos). Não é que me envergonhe de Terra de Pecado, mas achei que o livro não tinha nada que fazer na minha lista bibliográfica.

C.F.A. - Já pensou em reescrevê-lo?
J.S - Jamais reescreveria um livro. Um livro é um livro, pertence ao tempo da pessoa que o escreveu nesse tempo. Não posso retocar a minha imagem de 1947.

(...)

C.F.A - Esteve tanto tempo parado porquê?
J.S - É difícil responder. Se quisesse compor a minha imagem diria que a primeira publicação foi precipitada, que passei esses anos entregue à tarefa de viver primeiro para escrever depois. Mas é claro que não foi nada disso, não acredito que ninguém vá viver primeiro para escrever depois, é léria. (...) Ao viver o suficiente acaba-se por se ter qualquer coisa para dizer, que acho que sou capaz de dizer. Mas toda a minha vida literária considero-a fruto de circunstãncias. Se por volta dos 39, 40 anos não tivesse tido determinado choque sentimental talvez não tivesse escrito Os Poemas Possíveis. Com outro choque sentimental, talvez não es tivesse escrito assim.

(..)

C.F.A. - Em 75, o José Saramago...
J.S. - ... era director-adjunto do Diário de Notícias, fui-o de Abril ao 25 de Novembro e o escritor que eu hoje sou também resulta muito das circunstâncias. Se não tivesse vindo o 25 de Novembro, talvez não tivesse escrito o Levantado do Chão, nem o Memorial do Convento, nem O Ano da Morte de Ricardo Reis, embora seja impossível garantir isto. O escritor que hoje sou é um produto do 25 de Novembro, que me colocou até hoje na situação de desempregado. Achei-me, naquela altura, posto na rua, sem esperanças de encontrar emprego porque o meu empenhamento no DN me tinha queimado. (...) Então disse para mim: tens uns livritos escritos, tens a necessidade de escrever certas coisas, ou continuas a procurar emprego e a ser um escritor de fim-de-semana, ou então arricas.

(...)

C.F.A - Com que idade começou a ter uma consciência política?
J.S. - Com 20 e alguns anos, perto dos 30. Claro que empresta-se a casa para uma reunião da qual nada se sabe, e depois vai-se fazendo a ligação à prática de certos actos ditos subversivos, até chegar à militância. É melhor não falar porque nestas coisas seria uma história como as outras e há sempre alguém que me poderia dar lições de modéstia e descrição.

C.F.A. - O Saramago é um escritor que conheceu um êxito raro em Portugal e lá fora, sobretudo com Memorial e repetido em O Ano da Morte de Ricardo Reis. Esse êxito não ameaça a sua modéstia?
J.S - Se o êxito tivesse vindo mais cedo talvez tivesse achado que tinha muito tempo de vida para gozar a falta de modéstia. Sou tão pouco modesto como era dantes, não creio ser um exemplo de modéstia. Só que como continuo um pouco desligado das coisas, posso fazer as vezes de uma modéstia praticante, militante. Acontece que não tenho as formas óbvias de vaidade. Talvez tenha outras. O que me ajuda a equilibrar tudo isto é a consciência muito aguda da relatividade das coisas, da sua pouca importância. Por outro lado, sinto a escrita, a actividade literária, como uma espécie de exercício na corda bamba, onde depois de um êxito nos espera o falhanço. E também porque para mim o livro mais importante é sempre o último, o que está mais próximo. (...) Amanhã pode sair um livro que não seja tão bom e lá vão dizer que Perdigão perdeu a pena, depois de ter subido tão alto.

C.F.A. - Podem dizer o contrário. Como é a sua relação com a crítica literária?
J.S - Tenho íntima consciência do que faço, não toda a consciência da bondade do que faço, embora possa dizer que este livro é melhor do que aquele. Estava tão certo da minha necessidade de escrever algumas coisas que a opinião alheia só me poderia trazer ou a confirmação do que achava ou coisas que não me interessavam. Claro que gosto que me façam festas.

C.F.A. - E como criador, não tem as angustiazinhas existenciais?
J.S. - Não me vejo ao espelho a escrever e não gostaria que alguém estivesse a olhar para o espelho onde eu estivesse reflectido a escrever. Não mitifico a escrita por algumas razões. Por exemplo, gosto tanto de pintura e sou incapaz de fazer um boneco, um desenho. Não mitifico, por isso, o pintor, ou o músico. O mesmo para o escritor.

(...)

C.F.A. - Escreve à máquina?
J.S. - Numa velhíssima Hermes.

C.F.A. - Já pensou em escrever num computador?
J.S. - Já me falaram nisso mas eu preciso da minha máquina, daquela. Está tão velha que quando vai para a oficina o mecânico tem de fabricar as peças que faltam porque já ninguém as fabrica. Deve ter aí uns 40 anos. Já tem as teclas marcadas, não marca espaços...

C.F.A. - Escreve noite dentro? De manhãzinha?
J.S. - Não escrevo a altas horas, no silêncio da madrugada. Escrevo a horas normais, quando uma pessoa que tem todo o tempo para trabalhar escreve. Não faço noitadas. Tenho um método de trabalho regular e tenho a impressão de que resulta.

C.F.A. - É portanto metódico...
J.S. - Metódico e pontual.

C.F.A. - Escreve em casa, nos cafés?
J.S. - Nos cafés, nem pensar nisso! Só sei escrever em casa no ambiente da casa, com as coisas nos seus lugares, a ouvir os rumores do prédio, da rua, com a luz do dia. Em férias sou incapaz de escrever uma linha. Sento-me de manhã à máquina e não sai nada.

C.F.A. - Nunca sentiu que era incapaz de preencher a célebre página em branco?
J.S. - Insisto o meu bocado e se não resulta não insisto mais. Outra solução é ir-me deitar. Durmo um quarto de hora, meia hora, e o problema resolve-se por si enquanto estou a dormir.

(...)

C.F.A. - Durante a adolescência, tendo nascido num ambiente nos antípodas do ambiente intelectual, já tinha consciência da sua diferença?
J.S. - Isso acontece sempre na adolescência, ter consciência das diferenças de cultura, de instrução. Tem-se uma visão do mundo provisória e insubstituível. Há uma coisa que me ajuda a manter uma relação com aquilo de que me achava diferente, que é o mundo da minha infância, ligado às minhas origens, a pessoas ou coisas. Mantive com os meus avós maternos uma relação para além de todas as diferenças de ordem cultural ou intelectual. E a consciência da diferença não levou nem leva a rupturas: sempre fui deles e sempre foram meus.

(...)

Depois, a propósito do livro que preparava, A Jangada de Pedra: «em termos de projecto é tão coerente como os anteriores, mas acho que corro o risco que toda a gente corre».

C.F.A. - É como um jogo, esse risco?
J.S. - Não, que ideia... Um comprador de lotaria não corre risco nenhum, não arrisca nada, só perder o dinheiro com que a comprou. Não sou um jogador, nunca joguei nada, excepto "King" durante algumas semanas e algum xadres, quer dizer, empurrei as pedras. Fazer da criação um jogo é complicar as coisas. Isso pode ser interessante para os outros, não para mim.

C.F.A. - O Saramago, de facto, nunca se fez interessante, no mau sentido...
J.S. - Nunca me fiz interessante antes, não me faço interessante agora. Mas, agora, é mais difícil de garantir porque estando os projectores cá virados para esta lado, qualquer gesto pode ser assim interpretado. Tendo a viver com a naturalidade de sempre. Aqueles que me conhecem mais de perto sabem que sou a mesma pessoa, digo as mesmas piadas.

C.F.A. - Nos seus romances, escapa a essa moda temível do confessionalismo agudo, que deu em tantos autores portugueses deste tempo. O que pensa da mania?
J.S. - Acho um pouco tonto, a vida dos outros não me interessa nada. Interessa-me saber aquilo que é impossível saber, aquilo que falta saber. Vivemos num mundo de tal modo vertiginoso, de tamanha complexidade que, em rigor, dele dela nada sabemos. Não sabemos em que mundo vivemos.

(...)

C.F.A - Ao aliar a ficção à História acha que a ficção pode funcionar como correctivo da História?
J.S. - O que vem a ser a História? As viagens na História comparo-as com as viagens no espaço. Eu tenho aquele livro da Viagem a Portugal e agora poderia escrever outro em que teria como preocupação não passar por nenhum daqueles lugares do primeiro livro. No tempo pode e deve fazer-se a mesma coisa.

Prossegue depois falando de História, a propósito de Memorial do Convento:

J.S. - De facto, todo o romance é um romance histórico. Agora estamos aqui, neste lugar, e se daqui a 100 anosalguém escrevesse um romance que nos tomasse como personagens, aqui, com estes conflitos, estas experiências, estaria a escrever um romance histórico só porque se projectava num tempo anterior? A partir de que altura é que o passado passa a ser História? Eu não sei o que é o presente. Estamos aqui há mais de uma hora e faço a mesma diferença entre o que se passou há uma hora e o que se passou há 100 anos. Tenho idêntica dificuldade em reconstituir ambos os momentos. Quanto ao futuro, ele é apenas tempo não vivido. Agora o presente, como fixá-lo? Ele é tão fluido.

C.F.A. - Quando está a escrever um livro tem pressa de o acabar?
J.S. - Vivo em angústia, tenho mau viver. Vivo no silêncio, é um não estar cá, um modo de não estar cá.

C.F.A. - Tem dúvidas sobre o que escreve?
J.S. - Não, sou suficientemente inconsciente.

(...)

C.F.A. - Como é que pode dizer que é inconsciente? Já sabe o que vai escrever nos próximos anos... Será que essa é ainda uma maneira de não correr riscos? Ir para o Alentejo escrever, quando ficou desempregado, foi um risco? Ser militante do PC é um risco?
J.S. - Tenho pouca imaginação para correr riscos. Quanto ao risco de ser militante do PC resumo-o assim: dantes diziam: ele é bom mas é comunista. Agora dizem: ele é comunista mas é bom!"

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