Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Recuperação da entrevista de Clara Ferreira Alves, originalmente publicada no "Expresso" (2/11/1991)



Recuperação da entrevista de Clara Ferreira Alves, originalmente publicada no jornal "Expresso", em 2/11/1991, e que agora, foi compilada numa colecção "Grandes Entrevistas da História


«No meu caso, o alvo é Deus»

Entrevista 
"Publicado esta semana, O Evangelho Segundo Jesus Cristo contém uma história que todos conhecemos. E contém cenas e afirmações que alguns séculos atrás teriam lançado o autor na fogueira, sem direito a sepulcro. O escritor toma para si liberdades que são a substância da criação, e comporta-se, na invenção do seu mundo, como Deus. Este é o evangelho segundo Saramago... 

– Achas que os teus leitores crentes podem perguntar: que direito tem um ateu confesso, um comunista, de vir reescrever a nossa religião? 
– Eu não sei se era legítimo, agora que o fiz, fiz. O que chega a parecer incrível é que, se nós imaginarmos que Jesus não é filho de Deus, a nossa civilização está assente sobre coisa nenhuma. 

– Há uma tese escondida, no romance? 
– A tese escondida é a de que eu digo, em primeiro lugar, que o cristianismo não valeu a pena; e em segundo, que se não tivesse havido cristianismo, se tivéssemos continuado com os velhos deuses, não seríamos muito diferentes daquilo que somos. 

– O livro contém afirmações que poderão causar reacções... 
– ... Nas consciências, nas consciências... 

– ... A mais forte talvez seja a do final, em que invertes a frase de Jesus, que acaba por dizer: «Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez». Jesus rebela-se contra um Deus ao qual os homens têm de perdoar. Aqui está a tese do livro. 
— Pode ser que não esteja aí, mas é aí que tudo se fecha, que tudo vai ter. Trata-se da criação de uma nova religião, que nasce do tronco do judaísmo, e de uma decisão de Deus que não está satisfeito com o pequeno espaço e o pequeno povo que governa e que pretende alargar a sua... 

— Base de apoio? 
— Base de apoio. E necessita de um sacrifício e de um mártir. E como resulta do encontro de Deus com Jesus e com o Diabo, no Mar da Galileia — e no meio de um nevoeiro que dura quarenta dias —, Jesus obriga Deus a revelar-lhe o futuro dessa religião. que vai nascer. E esse futuro é uma carnagem, sangue que corre durante vinte séculos. De facto, como o Diabo diz em certa altura, é preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue. Deus (se existisse), sendo omnipotente, tudo teria de fazer para o bem dos homens nesta única vida que temos na terra. É condição necessária do homem sofrer e fazer sofrer para receber um prémio que não se sabe qual seja, ou se se sabe, consiste na contemplação eterna da face do Senhor, o que custa rios de sangue, renúncias à vida, clausura, sacrifício. 

— Está aqui implícita uma crítica ao cristianismo e ao catolicismo. Mas não há nessas religiões nada de bom? E serão elas diferentes de outras religiões, monoteístas ou não, na sua obsessão pela culpa, o pecado e o sacrifício? 
— Eu diria que a crítica não está implícita mas explícita. No meu Evangelho, Jesus é o filho de Deus contrariado, ao contrário dos Evangelhos em que ele sabe e age como filho de Deus. 

— Este Jesus é um homem como todos os outros; e este Deus, como é que é? É Deus uma criação dos homens, e como eles ávido de sangue, ou são os homens uma imagem de Deus? O Deus do livro é o Deus da convicção religiosa, enquanto o teu Deus pessoal não passa de uma invenção humana. 
— O do livro é um Deus derivado directamente de Jeová. 

— Tu não acreditas na existência de Deus, portanto Deus não passa de uma criação humana. Mas este Deus não servia o artificio ficcional e tiveste de ir buscar o Deus dos crentes, condição sine qua non para a existência da história narrada. No fundo, uma refutação de Deus sem dele prescindir. 
— Deus é uma criação humana e, como muitas outras criações humanas, a certa altura toma o freio nos dentes e passa a condicionar os seres que criaram essa ideia. 

— Poderíamos dizer o mesmo de todas as revoluções. 
— É inevitável, as religiões, como as revoluções, devoram os seus filhos. Há nas religiões um contínuo processo de devoramento em que Deus é como um Moloch que necessitasse do sacrifício humano. Imaginando que Deus existe — e não lhe concedo o beneficio da dúvida —, Deus não pode, por boa lógica, criar seres para os destruir. O cristianismo na sua derivante católica, que é a que conhecemos melhor, é uma história de sofrimentos contínuos. 

— Insisto: nas religiões monoteístas, é uma prática comum. 
— São todas, com excepção do confucionismo, que não é bem uma religião mas um sistema de valores, uma filosofia. O que não consigo perceber é a necessidade do sofrimento do corpo para salvar a alma. Abdicações, renúncias, cilícios, tristezas, amarguras, perseguições, vale de lágrimas. Veja-se a expressão, vale de lágrimas. 

— Se Deus é uma criação humana, o pecado não será a consequência da nossa necessidade de culpa? — É uma das questões do livro. Donde vem esse sentimento de culpa? Fomos educados na ideia de um pecado original que manchou para todo o sempre a espécie humana, cristã ou não. E assim se introduz na mente das pessoas um código sobre o que se permite ou não. Assim se cria a administração das almas, os delitos e os castigos de Deus, o código penal das religiões. O sistema tem o seu equivalente na sociedade civil, na existência de códigos de comportamento. 
Não se pode desejar a mulher do próximo — a formulação é machista, não diz que não se pode desejar o homem da próxima — como não se pode circular pela esquerda. 

— Tentas aplicar a lógica à religião e à fé? É ilógico. 
— Eu podia ter escrito um livro como este, questionando todas estas coisas de um ponto de vista apenas lógico, elementar; talvez nem mereça o nome de lógica, mas de simples bom senso. 

— Nada há de bom nas religiões? Se descontarmos a arte sacra, uma óbvia vantagem estética, não terá havido casos em que as religiões permitiram a sobrevivência e a resistência de vítimas? Veja-se o judaísmo, que todos os judeus não hesitam em afirmar ter sido o cimento da sua identidade e existência como povo, e da resistência às perseguições e às tentativas de aniquilação. 
— Mas as religiões tanto servem para sobreviver às perseguições como para fazer perseguições, e os perseguidos vão por, seu turno refugiar-se noutra religião que fará outros perseguidos. É um jogo entre poderes que se debatem em circunstâncias históricas diferentes. Veja-se as cruzadas, uma crença contra outra crença, uma guerra não entre um Deus e outro, Alá, mas entre dois livros, a Bíblia e o Corão. Do ponto de vista do meu bom senso é absurdo. 

— Racionalismo «voltairiano» ou marxismo-leninismo? E aí apetece-me dizer que o comunismo teve a sua teologia e a sua fé, os seus dogmas. E teve e tem as suas vítimas e perseguições. 
— Não creio que tivesse uma teologia, para encontrar vítimas não é necessário ir ao marxismo-leninismo ou ao cristianismo. Tens vítimas na exploração colonial, onde é indiferente se o explorado ou explorador é marxista-leninista ou católico. O meu racionalismo tem uma raiz «voltairiana». Esse cepticismo, essa ironia e essa espécie de compaixão pela loucura dos homens, vêm daí. Seria mais cómodo acreditar em Deus, mas escolhi o lugar da incomodidade. Tal como entre os crentes havia e há o «non possumus», também eu posso dizer que sou agnóstico, se ateu for uma palavra demasiado dura. 

— Vou fazer de advogado do diabo: primeiro, protegeste-te com a forma do romance do facto de estares a tentar reescrever uma religião. Ser escritor dá-te uma cobertura que o ensaísta não teria. Segundo, o projecto é ambicioso e pretensioso. Terceiro, é uma operação de marketing, depois de se saber o que aconteceu ao Salman Rushdie com Os Versículos Satânicos. 
— Dizer que tentei encontrar uma protecção no facto de ter escrito um romance e não um ensaio ignora uma circunstância: não poderia, porque não saberia, escrever esse ensaio. Aqui trata-se apenas de alguém que tendo lido os Evangelhos encontrou neles outras leituras sustentadas por alguma lógica. Um teólogo não escreveria um romance e eu não escreveria senão um romance. E penso ter chegado a resultados do ponto de vista estilístico e, até, da própria capacidade de persuadir pela via do romance. Neste livro, não se trata de fazer puras afirmações provocadoras mas de criar uma situação humana concreta, aceitando as consequências do que vai acontecendo e assumindo todos os riscos, quer o narrador, quer o autor, quer as personagens. Quanto a ser pretensioso, é possível que sim, talvez haja quem diga que não cheguei onde queria, mas não é isso que eu creio, e fiz exactamente aquilo que queria. 

— Terias a coragem de escrever um livro destes dentro da religião islâmica? 
— Talvez não tivesse essa coragem e sobretudo (peço desculpa por ter de chamar a atenção para este ponto) por causa de todas as diferenças — decerto todas elas favoráveis a Salman Rushdie — entre o livro dele e o meu. Há uma essencial que é bom que fique clara desde já: no livro de Rushdie, o alvo é Maomé. No meu caso, o alvo é Deus. E tão absurdo, para mim, pensar que quando se muda de religião se deixa para trás um deus e um diabo e uns infernos e uns paraísos e se adquire em estado novo outro deus, outros demónios e outros paraísos. E cada vez que o poder de Deus se restringe ou amplia, o poder do Demónio restringe-se ou amplia-se sem que ele tenha de fazer nada. É tão absurdo! Quando uma religião desaparece — e têm desaparecido muitas —, ao desaparecerem as entidades que representavam nessa religião o Bem e o Mal, desaparecem também o bem e o mal caracterizados por essa religião? 

— O Bem e o Mal, ou, como disseste, «fazer bem aos homens»: o que é que isto significa? O comunismo não era uma doutrina do bem contra o mal do capitalismo, não queria promover o bem entre Os homens? 
— O marxismo, não creio que se tenha apresentado nunca como o Bem. Essas categorias não são úteis quando entramos em questões como o marxismo, ou a Revolução Francesa. Eu lembrava-te a História do Cerco de Lisboa, onde a certa altura se apresenta a palavra não para negar qualquer coisa que estava antes. Os instrumentos para urna transformação, como é o caso do marxismo, representam um não, o não é o que põe em causa, rejeita, questiona. O que tem acontecido sempre é que esses nãos acabam por converter-se em sins e acabam por converter-se em sins no sentido cada vez menos positivo que a palavra sim pode assumir numa certa fase. A Revolução de Outubro foi o não ao czarismo, ao poder absoluto. Houve o momento da esperança, e depois este não transformou-se em sim, o sim que leva a burocracia, ao autoritarismo, a tudo de que deu abundantes provas a abortada tentativa de estabelecer o socialismo na União Soviética. O não inicial, mesmo que já contivesse os germes do que aconteceu depois, ficou num sim, ao qual foi preciso outra vez dizer não. 

— Uma dialéctica. Houve um momento de pureza na revolução russa? 
— Claro, também houve um momento de pureza na nossa revolução do 25 de Abril.

— A pureza não te horroriza? 
— Tu é que lhe chamaste pureza. Eu diria que há momentos em que a esperança ocupa o espaço todo. 

— Na União Soviética, quem é responsável pela perversão da ideia? Os homens, que nunca sabem servir as ideias? Ou aqueles homens em particular, que se enganaram todos e enganaram muita gente? 
— Eu sou tão pessimista (que acho que a humanidade não tem remédio. Vamos de desastre em desastre e não aprendemos com os erros. Para solucionar alguns dos grandes problemas da humanidade, os meios existem e contudo não são utilizados. 

— Que meios? Uma outra utopia? Uma doutrina? Uma ideia, ainda e outra vez? Não é altura de sermos práticos e concretos? O colapso do comunismo afectou a tua crença no comunismo? 
— Não afectou, serei dos poucos. Dantes, os comunistas eram milhões e milhões e milhões e de repente parece que são algumas centenas de milhares. Podes dizer que se trata, afinal de contas — eu que estou aqui a fazer a crítica das crenças —, de qualquer coisa em que persisto em acreditar. Acredito na possibilidade de o homem ser feliz, de viver em harmonia. 

— No comunismo, tal como nas grandes religiões, há uma espera, um tempo que não é bom e que se sacrifica ao futuro, que bom será. Uma espera do paraíso, seja ele depois da morte ou os amanhãs que cantam. Há sempre uma vida depois da morte. No comunismo há ainda uma redenção... 
— Bom, eu não lhe chamaria exactamente redenção, mas aceito. Eu chamar-lhe-ia humanismo radical, permitindo a harmonia nas relações entre os homens, na sua infinita diversidade. 

— O tempo das vacas gordas vai acabar? 
— Não sou eu quem o diz, é o Governo. 

— Teriam os comunistas administrado melhor o país? Veja-se o triste exemplo do Leste, um desastre ecológico, um desastre económico, repressão ou supressão das liberdades e garantias. Como se pode defender isto? Ou os soviéticos não eram «bons» comunistas, ou não eram sequer comunistas, e por isso é que falharam? [...] São exercícios e subtilezas que me ultrapassam. E os que ainda são comunistas dizem que o comunismo é bom e os homens é que são maus? É o mesmo que dizer que Deus é bom e os homens é que são maus. 
— Não entro nesse debate de serem comunistas ou não comunistas, chego à conclusão de que não eram, mas, a posteriori, é sempre fácil fazerem-se essas verificações. O que vou dizer soa a atitude idealista, ou ,,ignifica pôr o carro à frente dos bois: não se faz socialismo sem uma mentalidade socialista. E não se faz socialismo na mentira, na falta de respeito, em situações em que a liberdade ou a falta dela é condicionada por nomenclaturas ou privilégios de uma classe que controla... 
— Sem querer entrar pelo foro íntimo, não terá havido um momento um que tu e o dr. Cunhal olharam um para o outro e concluíram que a nomenklatura que o partido apoiava era uma enorme perversão da ideia comunista? 
— Eu não sei se ele chegou a alguma conclusão, e nunca olhámos um para o outro numa situação em que devêssemos discutir isso. Para mim, isso é claro desde há anos. E, de facto, a União Soviética não é nem nunca foi, para mim, uma referência política ou ideológica. Não é nada que eu já não tenha dito, e embora estas coisas não provem mito, a verdade é que depois do 25 de Abril não corri lá, e antes disso nunca tinha saído de Portugal. A única viagem que fiz à União Soviética foi há três anos, em plena perestroika. E quando há bocado te falei da mentira não foi por acaso, mas porque tinha em mente um caso concreto. Durante a guerra de 39-45, quando foi descoberto o massacre de Katyn, dos oficiais polacos, a informação que todos tínhamos é que tinham sido assassinados pelos nazis. Recentemente, a União Soviética veio reconhecer que tinha assassinado essa gente. Não posso aceitar que me mintam desta maneira, mesmo em nome das sujidades e sujeições da política. Mas aqui é mais grave, trata-se de um país que era uma referência ideológica, o «farol do futuro». 

— O massacre de Katyn é uma gota de água nos massacres instituídos pela União Soviética. E o gulag? E a Hungria? E a Checoslováquia? 
— Claro está. Mas a gota de água continuava no segredo e só recentemente foi revelada. E há a Hungria, a Checoslováquia, o gulag e tudo isso. E há coisas mais recentes e imperdoáveis, que é o facto de a União Soviética, por necessidades internas e pelo descalabro em que o país se viu, ter abandonado países e movimentos que cresceram e se desenvolveram à sombra do apoio e auxílio da URSS. Caso de Angola, Moçambique e Cuba, entre outros. Deixou cair povos em cujas consciências pôs esperanças e algumas realizações. 

— Essas dúvidas que te assaltaram nunca te levaram, como levaram outros intelectuais, a sair de um PC que era um fiel amigo da União Soviética? Não te sentiste mal dentro do partido? 
— Se alguma vez me tivesse sentido mal, tinha saído, e se um dia me sentir mal, saio. As minhas discordâncias, que são sérias, e nalguns casos sobre pontos essenciais, não foram suficientes para abandonar o partido. Creio que por causa da força da minha própria convicção, e sem esforço. É o único partido onde a minha convicção está à vontade e tem suficiente resposta. 

— Não estarás como o homem que não ousa prescindir da ideia de Deus, ou de uma religião, porque tudo seria mais difícil? Não terás medo de ficar órfão? 
— Não, a minha convicção é compensada por um cepticismo sólido. 

— Dir-se-ia que nunca se pode levar a lucidez às últimas consequências ou o mundo tornar-se-ia um lugar insuportável? 
— Admitamos que essa minha lucidez me levava a retirar-me do partido, de certa maneira eu não tinha resolvido nada. Perguntas-me o que resolvo dentro dele e digo-te. Chego a uma relação em que, apesar das discordâncias, existe bastante harmonia entre o que penso e o que o partido, como projecto de sociedade, contém. Não tenho medo de perder a bengala, a referência, a missa laica, mas considero que o partido tem sido um agente de intervenção na vida do nosso país antes e depois de 25 de Abril, e pode ser um instrumento de transformação da sociedade portuguesa. Mas estou consciente das limitações do partido, sem falar das minhas, e das limitações que o actual estado de coisas europeu e mundial põe, a prazo, a repetir ou renovar uma tentativa que, eventualmente, poderia vir a falhar de novo. O que não posso aceitar, e isso é visceral, é que o capitalismo seja a solução dos problemas do homem. Criará grupos, estratos, camadas prósperas, e criará desfavorecidos, misérias, carências, porque vive à custa dessas misérias e carências. 

— Onde estavas no momento do golpe de Moscovo e que sentiste? Há quem diga que ficaste muito silencioso. 
— Pensei o que continuo a pensar. Eu estava longe, a 40 km de Lisboa, a terminar este livro [...]. As [minhas] declarações estão [nos] •jornais e são muito claras: condenação do golpe, desacordo total em relação à posição que o partido tomou. O que não me achei foi tão importante que viesse a Lisboa fazer declarações à imprensa, à rádio e à televisão. 

— Sendo um escritor que faz incursões no tempo, e no passado, que consciência tens do tempo, do teu tempo histórico? Não falo da passagem do tempo. 
— Sim, eu sei. Não tenho uma ideia nada científica ao dizer isto, como não a tive nas coisas que disse antes. Muitas vezes são intuições, outras são convicções, suposições... Agrada-me pensar que o tempo não é essa diacronia, essa sucessão de momentos, agrada-me pensar no tempo como uma espécie de imensa tela onde se projectam se fixam os acontecimentos. E como se eu visse os acontecimentos projetados numa superfície única, onde tudo estivesse ao lado de tudo, onde tinhas a batalha de Maratona e a chegada do homem à Lua, ou a Clara Ferreira Alves e a Lucrécia Bórgia [risos]. 

— Obrigada. O teu livro começa com uma descrição de uma gravura de Dürer da crucificação onde está contida essa ideia de que tudo está ao lado de tudo. E como se essa gravura ilustrasse a tua noção de tempo. Estás contente com o livro que escreveste, ou estás mais contente do que com outros livros? 
— Estou tão contente como o mais contente que estive e com certeza mais contente do que algumas vezes estive. Dir-te-ia mesmo que este livro me dá um contentamento maior do que qualquer dos outros. A aposta era mais alta e tenho a impressão de não a ter perdido. Não direi que a ganhei, mas acho que não a perdi. 


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