10 de Agosto (de 1996)
"Há tempos, José Manuel Mendes pediu-me que escrevesse algo sobre Beja, destinado a um livro que a Câmara Municipal tinha na ideia publicar, com textos dos escritores que passaram pela sua Biblioteca. Embora a Viagem a Portugal pareça estar aí a demonstrar o contrário, nunca me sinto à vontade de cada vez que tenho de produzir este tipo de prosas, mas, vindo de quem vinha o pedido, não tive mais remédio que fazer do aperto decisão e espremer a cabecinha, a ver o que sairia. O que saiu apareceu-me agora em letra impressa: o livro estava à minha espera quando regressei de El Escorial. A releitura foi quase novidade, tão mal me lembrava do que havia escrito. Aqui deixo, portanto, este Não sei o que tenho em Beja, como se tivesse acabado de sair do estaleiro:
«Isto de cidades, no fundo, é como as pessoas. Damos com elas no caminho e na vida, umas vezes paramos a ver, a conversar, outras vezes, ou porque levávamos pressa, ou porque nos mostraram cara fechada, encontro pode ser que tenha havido, se encontro era, mas conhecimento a sério é que não. Durante muitos anos não fui nada viajeiro, levava a vida apertada, os carros eléctricos, ainda que isto pareça invenção minha de agora, consumiam-me em metade do mês a verba para transportes, e se é certo que sempre me restava o recurso natural de fazer a pé o caminho entre a casa e o trabalho, e volta, está claro que não me iria pôr a andar por esse Alentejo fora, para ir saber o que tinha em Beja. E não é que eu não tivesse sido, em tempos que evidentemente já lá vão, um andarim de mais que razoáveis dotes: cinquenta quilómetros com a mochila às costas para ir acampar nas margens da lagoa de Albufeira, além na península de Setúbal, fazia-os eu sem mais ajudas que os pés com que nasci e sem olhar para trás. Mas ir a Beja, está-se a ver, seria outra maratona. Imagine-se: à torreira do sol, por esses descampados, ainda por cima tendo de resistir à tentação de umas aldeias, vilas e cidades que me sairiam ao caminho a oferecer, consoante os casos, o simples refrigério de uma sombra e de um copo de vinho, um caldo, uma talhada de melão, ou, no caso de me picar a curiosidade das artes, que já então me entravam desses arrebatos, a penumbra silenciosa de um museu com figuras antigas a olhar para mim. O mais certo era não conseguir chegar a Beja.
«O tempo, como sabemos, tanto muda como não. Vezes sem conta dá-lhe para ficar sentado, sabemo-lo quando as pessoas, se lhes perguntamos como vai a vida, respondem encolhendo os ombros: «Sempre na mesma, sempre na mesma.» De repente, o diabo do tempo, não se sabe o que lhe deu, levanta-se, mexe-se, corre, pula, tira os nossos bens donde os tínhamos e arruma-os pela ordem que lhe apetece, fecha, tranca e condena umas portas, abre outras de par em par, recorta uma janela onde havia uma parede cega, é, como já ficou dito, um vivo demónio. Foi assim que comecei a fazer umas quantas viagens, poucas, modestas, primeiro pelos arredores, depois mais adiante, por aí fora, na direcção dos três pontos cardeais, no outro estava o mar, aí nem com botas de cortiça, até que cheguei a Beja.
«Se dessa vez tinha lá alguma coisa, não dei por isso. Andava com tanta literatura na cabeça que todo o meu afã foi assomar-me ao janelão donde, como se conta, a freira Mariana, às escondidas das colegas ciumentas, fazia sinais de lenço ao cavaleiro de Chamilly. O que eu queria perceber era se semelhantes manejos de sentimentaria, com seu quê de ridículo, poderiam objectivamente compaginar-se com as febris palpitações de um coração feminino que ousara trocar o Senhor por um bigode francês. Concluí que não. Ou bem que ela acenava com o lenço, ou bem que se retorcia nas ânsias de um amor culpado e pecador. Decidi esquecer a freira e o cavaleiro e ater-me apenas às cartas, à literatura, o que foi erro rematado. Ainda me faltava comer muito pão e muito sal, ainda tinha muito que viver antes de compreender que o espírito nunca está na letra, está sempre na pessoa que a escreveu, mesmo quando a pessoa se resignou a parecer menos que a sua própria letra.
«Passaram os anos, e eu sem saber o que tinha em Beja. Voltei lá uma vez, outra vez, vi o dentro e o fora, o baixo e o alto, pisei o chão e respirei o ar, andei por praças, ruas, igrejas e museus, disse e ouvi, perguntei-me se a colina onde está seria colina de verdade, se não foi a inúmera gente que ali viveu - romanos, visigodos, sarracenos, cristãos, e, antes de todos, aqueles primeiros de quem não sei o nome nem a história -, se não teriam sido eles que, construindo incessantemente sobre ruínas e demolições, foram levantando sobre a planície rasa a enorme mamoa prenhe de restos, de detritos, de fragmentos, de colunas, de pórticos, de umbrais, de pedras do lar, de ecos de palavras, de gritos de dor, de risos, de morte, de vida. Imaginei um poço que desces-se por ali verticalmente, através de todos aqueles mundos, pondo à vista a composição e a espessura da felicidade e da desgraça, da fome e da fartura, do certo e do errado de cada dia, até alcançar o nível da planície, onde ainda estão as cinzas da primeira fogueira e o sinal de um pé descalço. Pensei que provavelmente era isto o que eu tinha em Beja, o mesmo que em qualquer outro lugar por onde tivesse a humanidade passado.
«Depois veio o tempo em que a planície e as colinas alentejanas se puseram a estremecer de um gozo novo, quando abrir a terra para depor a semente se tornou em acto sacral, quando os homens e as mulheres repetiam os gestos antigos e os encontravam novos. Andei por lá, mas não por Beja, a escrever um livro, a levantá-lo do chão, como quem recolhe as cinzas de uma fogueira e o desenho de um passo. Foi por essa altura que um amigo, tão honrado de vida como de nome, me disse com expressão risonhamente repreensiva: «Vocês ficam todos lá por Évora...» A partir desse dia, comecei a suspeitar de que o que eu tinha em Beja, afinal, era uma dívida, não uma conta que tivesse deixado por pagar, não um empréstimo vencido e não liquidado, uma dívida como assim, aparentemente sem quê nem porquê, mas essas, se calhar, são as piores, as que mais custam a levar, as dívidas que não têm por trás o rosto de um credor. Quem depois me viu caminhar por aquelas ruas, becos e travessas, espreitando aos portais, farejando às esquinas, como quem anda à procura de algo que nem sequer conhece, não podia imaginar que pesos eu ia carregando na consciência. Soubera, finalmente, o que tinha em Beja, mas o que tinha em Beja não era nada que pudesse apagar de mim. E assim vivemos, ela e eu, até há mais ou menos um ano.
«Convidaram-me a falar em Beja sobre intolerâncias antigas e modernas, e eu lá fui, apesar de cansado doutras andanças semelhantes. A conferência era na Biblioteca Municipal, um edifício novo, funcional, de organização excelente, apenas com o senão de uma escadaria de acesso perigosamente empinada, como se de súbito ao arquitecto tivesse faltado o terreno ou como se deliberadamente a tivesse ali posto para avisar os leitores de que os caminhos do conhecimento tudo podem ser, menos caminhos de facilidade. Fizeram-me visitar a Biblioteca, secção por secção, quase livro por livro, e eu não precisei de fingir nem o sentimento nem as palavras para felicitar quem tinha a responsabilidade do seu governo. Para terminar, levaram-me a ver a secção infantil, ampla, desafogada, com pequenas cadeiras e pequenas mesas, almofadas coloridas, o paraíso da leitura, pensei eu, lembrando-me dos duros assentos daquela outra biblioteca municipal onde fiz, adolescente, as minhas primeiras aprendizagens literárias.
«Nisto estava, crendo não ter mais para ver, quando o meu guia me fez entrar numa espécie de caverna armada a um lado do grande salão de leitura. «E isto?», perguntei. «Os miúdos gostam de vir ler para aqui», responderam-me, enquanto entrávamos curvados. Não duvidei, na verdade eu próprio tive vontade de pedir um livro e estender-me naqueles coxins, como se estivesse dentro de um ovo, com um céu de pano por cima da cabeça, esquecido da conferência, resolvido a começar a aprender tudo outra vez, desde o princípio. Imaginei uma criança a entrar ali com o tesouro de um livro na mão, e sair de lá com esse outro tesouro maior que é o livro lido. Senti-me subitamente em paz, não devia já nada a Beja, o que eu tinha agora em Beja não era uma dívida, mas uma esperança. A esperança de que uma daquelas crianças, saídas da gruta de Ali-Babá e as Quarenta Lições, venha a escrever um dia, sobre Beja, o livro que eu não escrevi.»
in "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, páginas 196 a 200 (10/08/1996)
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