Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 8 de maio de 2016

"Todos os Nomes" e o mistério sobre a morte do irmão Francisco na inspiração desta obra ("Cadernos de Lanzarote Diário IV - 1996)

Sinopse da obra apresentada na página da Fundação José Saramago, e que pode ser aqui consultada, em http://www.josesaramago.org/todos-os-nomes/
"O protagonista é um homem de meia idade, funcionário inferior do Arquivo do Registo Civil. Este funcionário cultiva a pequena mania de coleccionar notícias de jornais e revistas sobre gente célebre. Um dia reconhece a falta, nas suas colecções, de informações exactas sobre o nascimento (data, naturalidade, nome dos pais, etc.) dessas pessoas. Dedica-se portanto a copiar os respectivos dados das fichas que se encontram no arquivo. Casualmente, a ficha de uma pessoa comum (uma mulher) mistura-se com outras que estás copiando. O súbito contraste entre o que é conhecido e o que é desconhecido faz surgir nele a necessidade de conhecer a vida dessa mulher. Começa assim uma busca, a procura do outro."

Capa da edição grega (1999)

27 de Agosto (de 1996) 
"Prossegue o mistério da morte de meu irmão Francisco. Julgava eu, recordando o que tantas vezes ouvi dizer a minha mãe, que ele tinha sido internado, sofrendo de difteria, no Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, onde viria a falecer, mas o Instituto, depois de buscar nos arquivos, informa-me de que nenhum Francisco Sousa filho dos nossos pais deu ali entrada. Teria, afinal, morrido em casa? Se assim foi, como é possível não ter eu conservado qualquer recordação do lutuoso acontecimento, por muito criança que fosse então? Teria ido morrer a outro hospital? É mais do que duvidoso, uma vez que o tratamento de casos clínicos daquela natureza tinha como lugar próprio (e talvez mesmo obrigatório) o Instituto Câmara Pestana. É certo que o desconhecimento destes e outros privilégios da civilização lisboeta, compreensível em quem só há poucos anos viera da bisonha Azinhaga para a cidade, poderia ter levado os meus pais a descuidar da gravidade do mal, acabando-se-lhes, por assim dizer, o filho nos braços. De todo o modo, não creio: meu pai estava na Polícia de Segurança Pública, com certeza falou da doença do filho aos colegas, e algum destes, ou um superior, não deixariam de encaminhá-lo caridosamente aonde convinha. Seja como for, porém, morresse onde morresse o mano Francisco, como é que o registo do seu falecimento não consta na Conservatória da Golegã? Que passo deverei dar agora? Pedir a alguém que percorra por mim os labirintos arquivísticos dos cemitérios de Lisboa, à procura de um Francisco Sousa que parece não querer aparecer? É que não é a mesma coisa requerer a um funcionário o favor de pesquisar uns poucos de livros antigos numa conservatória de província ou os registos de um estabelecimento hospitalar especializado, e esquadrinhar as infinitas, as vertiginosas listas mortuárias desses lugares aonde toda a vida vai parar..."

in, "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, página 207 (27/08/1996)

Cada da edição brasileira - Companhia das Letras (1997)

21 de Setembro (de 1996) 
"Esta manhã, ainda deitado na cama, entre as névoas do primeiro despertar, tal como se na minha frente fossem flutuando peças soltas de um mecanismo que, por si mesmas, procurassem os seus lugares e se encaixasssem umas nas outras, comecei a distinguir, de um extremo a outro, o desenvolvimento do enredo de Todos os Nomes, esse romance cujo título nasceu, em Janeiro, num avião que descia para Brasília, e que, para mostrar-se (definitivamente?), precisou que um outro avião me trouxesse a Amherst. Estava a pensar, de um modo vago, sonolento, nos esforços que tenho feito para encontrar a pista do meu irmão, e de repente, sem qualquer relação aparente, começaram a desfilar-me na cabeça as personagens, as situações, os motivos, os lugares de uma história que não chegaria a existir (supondo que a virei a escrever) se o óbito do Francisco de Sousa tivesse sido registado na Conservatória da Golegã, como deveria..." 

in, "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, página 222 (21/09/1996)



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